Intervenção de Frei Charles Morerod sobre Decreto de reforma dos estudos filosóficos
Fonte: Oblatvs
Frei Charles Morerod, OP
Na  manhã de hoje, realizou-se em Roma  uma coletiva de imprensa para  apresentação do Decreto de reforma dos  estudos eclesiásticos de  filosofia. Intervieram o Cardeal Grocholewski,  Prefeito da Congreg. para  a Educação Católica, Dom Jean Louis Bruguès,  secretário da mesma  congregação e o Frei Charles Morerod, reitor do Angelicum.
Uma  das razões da reforma, segundo o  Cardeal Grocholewski, é “a debilidade  da formação filosófica em muitas  instituições eclesiásticas, pela  ausência de pontos de referência  precisos, sobretudo em relação às  matérias a serem ensinadas e à  qualidade dos docentes. Esta debilidade é  ainda acompanhada de uma  crise dos estudos filosóficos em geral numa  época em que a própria  razão é ameaçada pelo utilitarismo, pelo  ceticismo, pelo relativismo,  pela desconfiança de que a razão possa  conhecer a verdade relativa aos  problemas fundamentais da vida, pelo  abandono da metafísica; enfim, às  vezes, o conceito de filosofia não  parece claro”.
Abaixo a tradução da breve intervenção do Frei Charles Morerod, OP: A importância da filosofia para o estudo da teologia.
O  cristianismo pressupõe uma harmonia  entre Deus e a razão humana. A  pesquisa filosófica pode ser, pois  confiável e o crente pode evitar opor  à própria fé uma verdade  encontrada com a razão. Esta confiança até  mesmo encoraja o crente a  procurar compreender o mundo, porque “o erro  [sobre as criaturas] pode  levar ao erro acerca das coisas de Deus” (S.  Tomás de Aquino, Summa contra Gentiles, livro II, cap. 4).
O Decreto de Reforma dos estudos eclesiásticos de Filosofia  convida os filósofos a “recuperar com força a ‘vocação original’ da   filosofia: a busca do verdadeiro e sua dimensão sapiencial e metafísica”   (§ 3). Trata-se de uma “ênfase no caráter sapiencial e metafísico” da   filosofia (§ 4) que não nega o papel de outros ramos da própria   filosofia. O papel central da metafísica deve, portanto, ser   compreendido à luz da importância de toda a filosofia no conhecimento   humano.
A  importância da filosofia está ligada  diretamente ao desejo humano de  conhecer a verdade e de organizá-la. A  experiência mostra que o  conhecimento da filosofia ajuda a organizar  melhor, em cooperação com  outras disciplinas, o estudo de qualquer  ciência. A metafísica visa a  conhecer o conjunto da realidade –  culminando no conhecimento da Causa prima de tudo – e a mostrar  a relação mútua entre os vários campos do saber,  evitando o fechamento  de cada ciência sobre si mesma. A metafísica evita  também a separação  dos diversos conteúdos da própria filosofia e,  ainda, da vida humana:  um metafísico não acredita dever opor verdade e  bem, conhecimento e  amor.
Também  a teologia deve estar atenta  para não fechar-se em si mesma. Se isto  acontecesse, tornar-se-iam  difíceis o diálogo dos teólogos com outros  campos do saber e a resposta  às críticas dirigidas contra a fé. Em todo o  caso, uma teologia sem  filosofia é simplesmente impossível, porque  ninguém se aproxima da  teologia sem ter idéias prévias,  que em parte são filosóficas. A  Bíblia, enquanto apenas texto, não  transmite a revelação: o seu  conteúdo deve ser conhecido. Aquilo que  pensa o leitor de um fragmento  bíblico será a mistura de elementos  contidos no texto com outros  conteúdos. O Papa João Paulo II resume o  impacto inevitável da  filosofia sobre a teologia: “Se o teólogo se  recusasse a valer-se da  filosofia, arriscar-se-ia a fazer filosofia sem o  saber e a fechar-se  em estruturas de pensamento pouco idôneas à  inteligência da fé” (Fides et ratio, § 77).
O  estudo da filosofia ajuda o teólogo a  ser consciente dos próprios  pressupostos filosóficos, a criticá-los e a  evitar impor à sua teologia  ou à sua pregação um quadro conceitual  incompatível com a fé. Para ser  justa, a reflexão crítica sobre teorias  filosóficas deve procurar a  verdade para além das aparências. Um  filósofo não-cristão pode ser útil à  filosofia, enquanto um filósofo  cristão que deseja demonstrar a  existência de Deus pode ter um impacto  contrário.
Um  problema crucial para a teologia é a  possibilidade de falar de Deus por  meio de palavras plasmadas para  descrever o mundo: não temos outras  expressões à nossa disposição.  Antes de tudo, as nossas palavras devem  poder dizer algo de verdadeiro a  propósito da realidade, de outro modo a  própria Bíblia nada afirmaria.  E ainda, as nossas palavras devem poder  descrever diversos níveis da  realidade: de fato, uma mesma palavra  utilizada na biologia, em poesia  ou na teologia não tem um significado  totalmente idêntico, mas também  não tem necessariamente um significado  totalmente diverso. Compreender o  uso da linguagem pressupõe, antes de  tudo, um estudo das diversas  dimensões do real e, sucessivamente, da  própria linguagem.
De  que modo podemos dizer algo a  propósito de Deus? Sem resposta  filosófica, tal pergunta pode  desqualificar a teologia no seu conjunto.  Descrevendo Deus como  “pessoa” ou como “amor” o fazemos à nossa imagem?  Isto depende antes de  tudo daquilo que entendemos por “causa”. Já São  Tomás considerava que  poderíamos falar de Deus com palavras humanas,  porque Deus é a Causa  primeira do mundo. Todavia, se falássemos de Deus apenas porque  é causa das criaturas, “seguir-se-ia que todos os nomes  aplicados a  Deus, seriam ditos dele por derivação” (Ia, q.13, a.2). Em  outras  palavras, Deus seria imagem do mundo… Para evitar tal  armadilha,  devemos acrescentar que a causa divina é infinitamente  superior aos  seus efeitos, tanto que as perfeições limitadas,  encontradas por nós  nas criaturas, estão antes em Deus e que n’Ele são  infinitas e unidas  na simplicidade. Estas distinções são metafísicas.
À  crítica medieval do uso teológico da  linguagem e da causalidade, sucede  a crítica moderna. Podemos falar de  Deus como causa sem fazer d’Ele uma  parte das causas deste mundo? A  pergunta é crucial e para respondê-la é  útil não se confinar totalmente  numa perspectiva que limite a  causalidade à causa eficiente, a um  processo intra-mental, ou que limite  o seu uso a um nível apenas da  realidade. Como em todo diálogo, a  crítica que nos é dirigida deve ser  estudada em si mesma, mas não  limitada à perspectiva do interlocutor. A  metafísica pode alargar os  horizontes.
A  causa não é apenas causa eficiente.  Em outras palavras, para  compreendermos a nós mesmos não basta conhecer  os nossos pais: isto é  certamente útil, mas não basta para viver (por  isto os pais têm um dever  educativo). A realidade não se compreende sem  a causa graças à qual se  faz algo, isto é, a causa final, a meta.
Por  exemplo, a catequese é  frequentemente confrontada com perguntas sobre a  relação entre a  evolução das espécies e a estória bíblica da criação.  As tentativas de  passar diretamente da teologia à biologia são pouco  frutuosas. É  necessária uma mediação filosófica. A filosofia deverá  colocar-se uma  pergunta sobre a forma originária do evolucionismo, a  darwiniana: como  faz para explicar o que se está descrevendo, isto é, a  onipresença da  causa final? Um evolucionismo finalizado não exclui a  ação divina,  ainda que não a mostre diretamente.
O  catequista que trata da evolução é  tentado a desqualificar a Bíblia  como Palavra de Deus, ou a fechar-se  num fundamentalismo que nega a  verdade das descobertas científicas.  Para evitar tal alternativa  desastrosa é necessário estudar um outro  aspecto da causalidade, isto é,  a relação entre diversos níveis de  causalidade num mesmo efeito. Por  detrás desta questão técnica se  esconde a possibilidade de compreender  como o texto bíblico pode ter  Deus como autor, e ao mesmo tempo os  autores humanos. O mesmo problema  se põe em outros setores da teologia:  quem dá a graça do sacramento,  somente Deus ou Deus e o sacerdote? Em  outras palavras: por que a  Igreja? Deus não nos pode salvar sozinho? Há  uma resposta teológica:  Jesus chamou os apóstolos. Mas para compreender o  sentido de tal  resposta, explicá-la e ligá-la ao resto do saber, é  necessária a  metafísica.
Fonte: Santa Sé
Tradução: OBLATVS
 
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