sexta-feira, 15 de abril de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 24

LIVRO  DÉCIMO
CAPÍTULO I
Finalidade do livro


  Ó Deus, faz que eu te conheça, meu conhecedor, que eu te conheça como de ti sou conhecido. Virtude de minha alma, penetra-a, assemelha-a a ti, para que a tenhas e possuas sem mancha nem ruga.
  Esta é a esperança com que falo, e nesta esperança me alegro, quando gozo de sã alegria. Tudo o mais desta vida, tanto menos se há de chorar quanto mais o choramos, e tanto mais teríamos que chorar quanto menos o choramos. 


  Mas tu amaste a verdade, porque quem a pratica alcança a luz. Eu desejo praticá-la em meu coração, diante de ti, por esta minha confissão, e diante de muitas testemunhas por meus escritos. 

CAPÍTULO II
O que é confessar a Deus


  E, para ti, Senhor, que conheces o abismo da consciência humana, que poderia haver de oculto em mim, ainda que não to quisesse confessar?
  Poderia apenas esconder-te de mim, e nunca me esconder de ti. Agora que meus gemidos dão testemunho do desagrado que sinto por mim, tu me iluminas e me agradas, e és amado e desejado a ponto de eu me envergonhar de mim. renuncio a mim para te escolher, e não quero agradar a ti ou a mim senão por teu amor. 
  Portanto, assim como sou, Senhor, tu me conheces. Já te disse com que escopo me vou confessando a ti. Faço esta confissão não com palavras e vozes do corpo, mas com as palavras da alma e o brado da inteligência, que teus ouvidos conhecem. Quando sou mau, confessar-me ai é o mesmo que desprezar a mim próprio; quando sou bom, é apenas nada atribuir a mim mesmo. Porque tu, Senhor, abençoas o justo, mas antes tornas justo ao pecador.
  Assim, meu Deus, a confissão que faço em tua presença, é e não é silenciosa; a boca se cala, mas meu coração clama. Tudo o que digo aos homens de verdadeiro já tinhas ouvido de mim, e nem ouves nada de mim que antes não me tivesses dito.

CAPÍTULO III
Por que se confessar aos homens?


  Que tenho eu que ver com os homens, para que me ouçam as confissões, como se eles pudessem curar as minhas enfermidades? São curiosos para conhecer a vida alheia, mas indolentes para corrigir a própria! Por que desejam ouvir de mim quem sou, quando não se importam em saber de ti o que são? E como podem saber, ao me ouvirem falar de mim mesmo, se lhes digo a verdade, uma vez que homem algum sabe o que se passa no outro, senão o espírito do homem, que nele, habita? Mas, se ouvissem a ti falar deles, não poderiam dizer: “O Senhor mente”. E o que é ouvir-te falar de si, senão conhecerem-se a si mesmos? E quem,
conhecendo a si mesmo, pode dizer “é falso”, sem mentir?
  A caridade crê em tudo – pelo menos entre corações que ela unifica em si por seus laços – por isso também eu, Senhor, me confesso a ti para que me ouçam os homens. A eles não posso provar que falo a verdade; mas crêem-me aqueles cujos ouvidos a caridade abre para mim.
  Mas tu, Médico da minha alma, faze-me ver claramente a utilidade de meu propósito. As confissões de meus pecados passados – que já perdoaste e esqueceste, para me fazer feliz em ti, transformando minha alma com tua fé e teu sacramento – levam o coração dos que as lêem e ouvem a não dormir no desespero dizendo: “Não posso”. Mas despertem para o amor pela tua misericórdia e para a doçura de tua graça, que fortalece o fraco e este se dá conta de sua debilidade. 
  Os bons, por sua vez, se agradam em ouvir os pecados passados daqueles que já não sofrem. Agrada-lhes, não por serem pecados, mas porque o foram, e agora já não o são. 
  Mas, Senhor meu – a quem todos os dias se confessa minha consciência, agora mais confiante com a esperança na tua misericórdia que na sua inocência – que proveito haverá em confessar aos homens, na tua presença, neste livro, não o que fui, mas o que sou agora? Sobre a confissão do passado, e dos seus eventuais proveitos, já falei acima. 
  Há muitos porém, quer me conheçam, quer não, que desejam saber quem sou agora, neste momento em que escrevo as Confissões. Já ouviram de mim ou de outros alguma coisa a meu respeito, mas seu ouvido não ouve meu coração, onde eu sou o que sou. Querem, certamente, saber por confissão minha o que sou no íntimo, lá onde não podem penetrar com a vista, com o ouvido, ou com a mente. Estão dispostos a acreditar em mim. Mas poderão igualmente estar certos de me conhecer? A caridade, que os torna bons, lhes diz que eu não minto quando confesso tais coisas de mim. É ela que os faz acreditarem em mim. 

CAPÍTULO IV
O fruto das confissões


  Mas, com que propósito desejam ouvir-me?  Desejarão talvez congratular-me comigo, ouvindo quanto me aproximei de ti por tua graça, e orar por mim, ao ouvir quanto me retardou o peso de minhas culpas? A estes mostrarei quem sou; já não é pequeno fruto, Senhor meu Deus, que muitos te dêem graças por mim, e que muitos te roguem por mim. possa o coração de meus irmãos amar em mim o que ensinas a amar, e, deplorar em mim o que ensinas a aborrecer! Mas que brotem tais sentimentos em uma alma irmã, e não em almas estranhas, ou nesses filhos espúrios, cuja boca fala vaidade, e cuja direita é a direita da iniqüidade, que o faça uma alma fraterna que se alegra por mim quando me aprova, e quando me reprova se aflige por mim,
porque quer me aprove, quer não, me ama. 
  É a esses que me revelarei. Que eles respirem diante de minhas boas ações, e suspirem à vista de meus pecados. As obras boas são tuas obras e teus dons; as más são meus pecados. As obras boas são tuas obras e teus dons; as más são meus pecados, objeto de teus juízos. Respirem pelo bem e suspirem pelo mal, e que subam à tua presença hinos e lágrimas desses corações fraternos, que são os teus turíbulos. 
  E tu, Senhor, que te alegras com a fragrância de teu santo templo,  tem piedade de mim, segundo tua grande misericórdia por causa de teu nome, e tu, que jamais abandonas uma obra começada, aperfeiçoa em mim o que há de incompleto. 
  Este poderá ser fruto de minhas confissões, não do que fui, mas do que sou. Farei minha confissão não apenas a ti, com íntima alegria mesclada de temor, e com secreta tristeza mesclada de esperança, mas também para os homens, que compartilham minha alegria e de minha mortalidade, meus concidadãos e peregrinos como eu, quer os que me precederam, como os que me seguem ou me acompanham no caminho da vida. Estes são teus servos, meus irmãos, que tu quiseste fossem filhos teus e meus senhores, e a quem me mandaste servir se quisesse viver contigo e de ti.
  Mas este preceito teria sido de pouco valor para mim, se teu Verbo o tivesse proferido apenas com palavras, e não tivesse mostrado o caminho com a obra. Eis que eu o imito pela ação e pela palavras, e o faço à sombra de tuas asas, o perigo seria grande demais, se minha alma aí não se abrigasse, e se minha fraqueza não te fosse conhecida. 
  Sou como uma criança, mas meu Pai vive sempre, e é meu tutor idôneo; ele é a um tempo o que me gerou e o que me protege. Tu és todo o meu bem, tu, onipotente, que estás comigo mesmo antes de eu estar contigo. 
  Revelarei pois, a estes, a quem me mandas servir, não como fui, mas como já sou agora, e como ainda não sou. Mas não quero julgar-me a mim mesmo. Assim é que peço para ser ouvido.

 CAPÍTULO V
A ignorância do homem


  És tu, Senhor, quem me julga, porque ninguém conhece o que se passa no homem, a não ser o seu espírito que nele está, todavia há no homem coisas que até o espírito que nele habita ignora. Mas tu, Senhor, que o criaste, conheces todas as coisas. E eu, embora diante de ti me despreze e me considere como terra e cinza, sei algo de ti que ignoro de mim mesmo. É certo que agora vemos por espelho, em enigmas, e não face a face. Por isso, enquanto peregrino longe de ti, estou mais presente a mim do que a ti. Sei que em nada podes ser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso resistir e a quais não posso. Todavia há esperança, pois és fiel, e não permites que sejamos tentados além de nossas forças; com a tentação, dás também meios para
suportar, para que possamos resistir.
  Confessarei, portanto, o que sei de mim, e também o que de mim ignoro, porque o que sei de mim só o sei porque me iluminas, e o que de mim ignoro continuarei ignorando até que minhas trevas se transformem em meio-dia, em tua presença. 

CAPÍTULO VI
Quem é Deus?


  O que sei, Senhor, sem sombra de dúvida, é que te amo. Feriste meu coração com tua palavra, e te amei. O céu, a terra e tudo quanto neles existe, de todas as partes me dizem que te ame; nem cessam de repeti-lo a todos os homens, para que não tenham desculpas. Terás compaixão mais profunda de quem já te compadeceste; e usarás de misericórdia com quem já foste misericordioso. De outro modo, o céu e a terra cantariam teus louvores a surdos. 
  Mas, que amo eu, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendor fugaz, nem a claridade da luz, tão cara a estes meus olhos, nem as doces melodias das mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de ungüentos e de aromas, nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nada disto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento, um abraço de meu homem interior, onde brilha para minha alma uma luz sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, onde exalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetite não diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o
meu Deus! 
  Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela me disse: “Eu não sou Deus”. E tudo o que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aos répteis viventes, e eles me responderam: “Não somos teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, me disse: “Anaxímenes está enganado eu não sou Deus”. Perguntei ao céu, ao sol, à luz e às estrelas. “Tampouco somos o Deus a quem procuras” – me responderam.
  Disse então à todas as coisas que meu corpo percebe: “Dizei-me algo de meu Deus, já que não sois Deus; dizei-me alguma coisa dele” – e todas exclamaram em coro: “Ele nos criou” – Minha pergunta era meu olhar, e sua resposta a sua beleza.
  Dirigi-me, então, a mim mesmo, e perguntei: “E tu, quem és?” – e respondi: “Um homem”. Para me servirem, tenho um corpo e uma alma: aquele exterior, esta interior. Por qual deles deverei perguntar pelo meu Deus, a quem já havia procurado com o corpo desde a terra até o céu, até onde pude enviar os raios de meu olhar como mensageiros? Melhor, sem dúvida, é a parte interior de mim mesmo. É a ela que dirigem suas respostas todos os mensageiros de meu corpo, como a um presidente ou juiz, respostas do céu, da terra, e de tudo o que existe, e que proclamam: “Não somos Deus” – e ainda – “Ele nos criou”. O homem interior conhece essas coisas por meio do homem exterior; mas o homem interior, que é a alma, também conhece essas coisas por meio dos sentidos do corpo.
  Interroguei a imensidão do universo acerca de meu Deus, e ele me respondeu: “Não sou eu, mas foi ele quem me criou”.    Mas essa beleza não se manifesta a quantos têm sentidos perfeitos? E por que não fala a
todos a mesma linguagem?
  Os animais, pequenos ou grandes, a vêem; mas não podem interrogá-la, porque não receberam a razão que, como juiz, interprete as mensagens dos sentidos. Os homens, porém, podem interrogá-la, para que as perfeições invisíveis de Deus se manifestem pelas suas obras. Mas o amor às coisas criadas os escraviza, e assim os torna incapazes de julga-las. Ora, elas só respondem aos que podem julgar-lhes as respostas. Elas não mudam sua linguagem, isto é, sua beleza, quando um só as vê, e outro as interroga; elas não lhes aparecem diferentes mas, para uns ficam mudas, enquanto falam a outros. Ou melhor: eles falam a todos, mas apenas se entendem os que comparam sua expressão exterior com a verdade interior. De fato a verdade me
diz: “Teu Deus não é nem o céu, nem a terra, nem corpo algum. A natureza das coisas o diz para quem sabe ver; a matéria é menor em seus elementos que em seu todo. Por isso, minha alma, digo-te que és superior ao corpo, pois vivificas sua matéria, dando-lhe vida, como nenhum corpo pode dar a outro corpo. Mas teu Deus é também para ti a vida de tua vida. 

CAPÍTULO VII
Deus e os sentidos


  Que amo, então, quando amo a meu Deus? Quem é aquele que está acima da minha alma? É por minha alma; portanto, que subirei até ele. Hei de sobrepujar a força que me ata ao corpo, e que enche meu organismo de vida, pois não encontro nela o meu Deus. Se assim fosse, o cavalo e a mula, que não têm inteligência, também o encontrariam, porque essa mesma força vivifica seus corpos.
  E existe outra força, que não só vivifica, mas que também torna sensível minha carne que o Senhor me deu, ordenando ao olho que não ouça, e ao ouvido que não veja, mas àquele que sirva para ver, e a este para ouvir; e que determinou a cada um dos outros sentidos o respectivo lugar e ofício. É deles que se serve minha alma para exercer suas diversas funções, permanecendo, contudo, uma só. 
  Vencerei também essa força, que também a possuem o cavalo e a mula, pois também eles sentem por meio do corpo.

CAPÍTULO VIII
O milagre da memória


  Vencerei então esta força de minha natureza, subindo por degraus até meu Criador.
  Chegarei assim diante dos campos, dos vastos palácios da memória, onde estão os tesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda espécie. Lá também estão armazenados todos os nossos pensamentos, quer aumentando, quer diminuindo, ou até alterando de algum modo o que nossos sentidos apanharam, e tudo o que aí depositamos, se ainda não foi sepultado ou absorvido no esquecimento. 
  Quando ali penetro, convoco todas as lembranças que quero. Algumas se apresentam de imediato, outras só após uma busca mais demorada, como se devessem ser extraídas de receptáculos mais recônditos. Outras irrompem em turbilhão e, quando se procura outra coisa, se interpõem como a dizer: “Não seremos nós que procuras?” Eu as afasto com a mão do espírito da frente da memória, até que se esclareça o que quero, surgindo do esconderijo para a vista.
  Há imagens que acodem à mente facilmente e em seqüência ordenada à medida que são chamadas, as primeiras cedendo lugar às seguintes, e desaparecem, para se apresentarem novamente quando eu o quiser. É o que sucede quando conto alguma coisa de memória. 
  Ali se conservam também, distintas em espécies, as sensações que aí penetraram cada qual por sua porta: a luz, as cores, as formas dos corpos, pelos olhos; toda espécie de sons, pelos ouvidos; todos os odores, pelas narinas; todos os sabores, pela boca; enfim, pelo tato de todo o corpo, o duro e o brando, o quente e o frio, o suave e o áspero, o pesado e o leve, quer extrínseco, como intrínseco ao corpo. A memória armazena tudo isso em seus vastos recessos, em suas secretas e inefáveis sinuosidades, para lembra-lo e trazê-lo à luz conforme a necessidade. Todas essas imagens entram na memória por suas respectivas portas, sendo ali armazenadas. 
  Todavia, não são as coisas em si que entram na memória, mas as imagens das coisas sensíveis, que ali ficam à disposição do pensamento que as evoca. Mas quem poderá explicar como se formaram tais imagens, apesar de se conhecer o sentido pelo qual foram captadas e escondidas em seu íntimo? Pois, mesmo quando estou em silêncio e no escuro, imagino, se quiser, as cores, e sei distinguir o branco do preto, e todas as outras entre si; e isto sem que os sons, mesmo os lembrados, perturbem minhas imagens visuais, e permanecem como que a parte. Se decido chama-los, eles se apresentam imediatamente. Mesmo quando minha língua descansa e minha garganta se cala, canto quanto quero, sem que as imagens das cores, também
presentes, se interponham ou perturbem enquanto me sirvo do tesouro que me entrou pelos ouvidos.
  Do mesmo modo as demais impressões, introduzidas e armazenadas em mim por meio dos outros sentidos, posso recordar a meu talante; distingo o aroma dos lírios do das violetas, sem cheirar nenhuma flor; e sem provar nem tocar em nada, mas apenas com a lembrança, posso preferir o mel ao arrobe e o macio ao áspero. 
  Tudo isto realizo interiormente, no imenso palácio da memória. Ali eu tenho às minhas ordens o céu, a terra, o mar, com tudo o que neles pude perceber, com exceção do que já me esqueci. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali estão todas as lembranças do que aprendi, quer pelo testemunho alheio, quer pela experiência. Deste mesmo manancial provém as analogias entre fatos de minhas experiências pessoais, ou em que acreditei baseado nas experiências previas; ligo umas e outras ao passado, e medito no futuro, nas ações, nos acontecimentos, nas esperanças, e tudo como se estivesse presente.
“Farei isto ou aquilo” – digo para mim, nesse vasto universo de minha alma, repleto de imagens de tantas e tão grandes coisas. E disso tiro esta ou aquela conclusão. “Oh! Se acontecesse isto ou aquilo!” “Queira Deus não aconteça isto ou aquilo!” isto digo em meu íntimo, e nisso visualizando as imagens das realidades que exprimo, saídas do mesmo tesouro da memória; sem elas, nada poderia dizer. 
  Grande é realmente o poder da memória, prodigiosamente grande, meu Deus! É um santuário amplo e infinito. Quem o pôde sondar até suas profundezas? É um poder próprio de meu espírito, que pertence à minha natureza; mas eu não sou capaz de compreender inteiramente o que sou. Será o espírito demasiado estreito para se conter a si mesmo? Onde, então, está o que ele não pode conter de si? Estaria fora dele, e não nele? Como então não o contém? 
  Esta idéia me provoca grande admiração, e me enche de espanto. Viajam os homens para admirar as alturas dos montes, as grandes ondas do mar, as largas correntes dos rios, a imensidão do oceano, a órbita dos astros, e se esquecem de si mesmos! Nem se admiram que eu fale dessas coisas sem vê-las com os olhos; contudo, eu não as poderia mencionar se esses montes, se essas ondas, esses rios, esses astros, que eu vi, se esse oceano, no qual acredito pelo testemunho alheio, eu não os visse na memória em toda sua dimensão, como se estivessem diante de mim. mas quando eu os vi com meus olhos, eu não os absorvi; não são as coisas que se encontram dentro de mim, mas apenas suas imagens. E sei por qual sentido do corpo recebi a impressão de cada uma delas. 

CAPÍTULO IX
A memória intelectual 


  E não se limita a isto a imensa capacidade de minha memória. Ali estão, como em um lugar recôndito, que alias, não é um lugar, todas as noções aprendidas das artes liberais, pelo menos as que ainda não esqueci. Mas, neste caso, não são as imagens delas que trago em mim, mas as próprias realidades em si. As noções de literatura, a dialética, as diferentes espécies de questões, tudo o que sei a respeito desses problemas estão em minha memória, mas não estão ali como a imagem solta de uma coisa, cuja realidade se deixou fora. Nesse caso seria como um som que se ouve e passa, como a voz que deixa no ouvido um rastro, que permite que a lembremos, como se ainda soasse embora já não soe; ou como o perfume que, ao passar e desvanecer-se no ar, atinge o olfato e grava sua imagem na memória, imagem que a lembrança reproduz; ou como o alimento, que perde o sabor no estômago, mas o conserva na memória; ou como um corpo que se sente pelo tato e que, ausente, é imaginado pela memória. Todas essas realidades não nos penetram a memória, mas tão somente são captadas as suas imagens com maravilhosa rapidez, e dispostas, digamos, em compartimentos admiráveis, de onde são extraídas pelo milagre da lembrança. 

CAPÍTULO X
Memória dos sentidos
 

  Ouço dizer que há três gêneros de questões a saber: se uma coisa existe, qual a sua natureza e qual sua qualidade – retenho a imagem dos sons de que se compõem estas palavras, e sei que estes atravessaram o ar como ruído, e já não existem. Mas as realidades significadas por tais palavras, eu jamais atingi com nenhum sentido do corpo, nem as vi em nenhuma parte fora de meu espírito; o que gravei na minha memória não são suas imagens, mas as próprias realidades. Que me digam, se o puderem, por onde entraram em mim! percorro em vão todas as portas do meu corpo, e não descubro por onde poderiam ter entrado. Com efeito: os olhos dizem: “Se são coloridas, fomos nós que as transmitimos.” – Os ouvidos dizem: “Se eram sonoras, foram por nós comunicadas”. – As narinas dizem: “Se tinham cheiro, passaram por aqui”. – E o gosto diz: “Se não têm sabor, nada me perguntem”. – O tato declara: “Se não são corpóreas, eu não as toquei, e portanto não poderia revelá-las” 
  De onde, então, e por onde entraram em minha memória? Ignoro-o. Aprendi-as não dando crédito ao testemunho alheio, mas as reconheci em mim e aprovei-as como verdadeiras; confiei-as a meu espírito como em depósito, de onde poderei tirá-las quando quiser. Estavam pois ali, antes mesmo que eu as aprendesse, mas não na memória. E onde estavam então? E porque, ao serem mencionadas, eu as reconheci e disse: “É assim mesmo, é verdade” –  senão porque já estavam em minha memória? Mas tão escondidas e sepultadas em tão secretos recessos, que se alguém não as arrancasse dali com suas perguntas, talvez eu nem pudesse concebê-las. 

CAPÍTULO XI
Idéias inatas


  Por isso descobrimos que adquirir tais noções – cujas imagens não atingimos por meio dos sentidos mas que percebemos em nós, sem o auxílio de imagens, tais como são em si mesmas, nada mais é do que coligir com o pensamento os elementos esparsos na memória e, pela reflexão, obrigá-los a estarem sempre disponíveis à memória, onde antes se ocultavam em desordem e abandono, de modo que se apresentem sem dificuldade ao chamado do nosso espírito. E quantas noções deste tipo não encerra minha memória, já descobertas e, como disse, postas como que à mão; eis o que chamamos de “aprender” e “saber”. Se porém deixo de as recordar por uns tempos, de tal modo submergem e se dispersam em seus profundos esconderijos, que é preciso reuni-las uma segunda vez, como se fossem novas (cogente) – pois não têm outra habitação – e juntá-las de novo para que possam ser objeto do saber; isto é: preciso tirá-las de sua condição de dispersão e juntá-las novamente. Daí a palavra  cogitare, porque cogo e cogito são como ago e agito, e facio, facito. Contudo, a inteligência reivindicou essa palavra (cogito) para si, de modo que essa operação de coligir, de reunir no espírito, e não em outra parte, é propriamente o que se chama pensar (cogitare). 

CAPÍTULO XII
A memória e as matemáticas 


  A memória guarda também as relações e inumeráveis leis dos números e dimensões, sendo que nenhuma dessas idéias foi impressa em nós pelos sentidos do corpo, porque não têm cor, nem som, nem têm cheiro, nem gosto, nem são tangíveis. Ouço, quando elas se fala, os sons das palavras que as exprimem; mas uma coisa são os sons, e outra bem diferente são as idéias que elas significam. As palavras soam de modo diferente em grego e em latim; mas as idéias nem são gregas, nem latinas, nem de nenhuma outra língua. 
  Vi linhas traçadas por artistas, finas como um fio de aranha. Mas as linhas materiais não são a imagem das que vi com meus olhos carnais. Para reconhecê-las não há necessidade alguma de se pensar em um corpo qualquer, pois, é no espírito que as reconhecemos. 
  Também conheci os números mediante os sentidos do corpo: mas a idéia de número é bem diferente: não são imagens dos primeiros, possuindo por isso mesmo um ser muito mais real. 
  Ria-se de mim quem não compreender o que disse; eu terei compaixão de seu riso.

CAPÍTULO XIII
A memória da memória 
 

  Tudo isso eu guardo em minha memória, assim como o modo pelo qual o aprendi. Também guardo na memória as muitas argumentações infundadas que ouvi contra essas verdades. Essas objeções sem dúvida são falsas, mas não é falso recordá-las. E lembro de ter sabido distinguir entre essas verdades e os erros que se lhe opunham. Vejo agora que uma coisa é essa distinção, que faço hoje, e outra o recordar ter feito muitas vezes tal distinção, ao considerá-las. Lembro-me, portanto, de ter muitas vezes compreendido isso, e confio à memória o ato atual de distingui-las e compreendê-las, para me lembrar, mais tarde, de que hoje as compreendi. Lembro-me então de que me lembrei; e se mais tarde lembrar de que agora pude recordar essas coisas, será ainda por força da memória. 

CAPÍTULO XIV
A lembrança dos sentimentos
 

  Essa mesma memória conserva também os afetos da alma, não do modo como os sente a alma quando da vivencia, mas de modo muito diverso, segundo o exige a força da memória. Lembro-me de ter estado alegre, ainda que não o esteja agora; recordo minha tristeza passada, sem estar triste; lembro-me de ter sentido medo, sem senti-lo de novo; lembro-me de antigo desejo, sem que o mesmo sinta agora. Outras vezes, pelo contrário, lembro-me com alegria a tristeza passada, e com tristeza uma alegria passada. Isto nada tem para admirar quando se trata de emoções corporais, porque uma coisa é a alma e outra o corpo; e assim não é maravilha que me lembre com alegria de um sofrimento físico já passado.
  Porém, aqui o espírito é a própria memória. Quando confiamos uma tarefa a alguém, dizemos: “Não o guardei no espírito”, “fugiu-me do espírito”. É, portanto, a memória que chamamos de espírito. Sendo assim, por que ao evocar com alegria uma tristeza passada, meu espírito sente alegria e minha memória, tristeza? Se meu espírito se alegra com a alegria que tem em si, por que a memória não se entristece com a tristeza, que também tem em si? Seria a memória estranha ao espírito? Quem ousará afirmá-lo? Sem dúvida a memória é como o estômago da alma, e a alegria e a tristeza são como alimentos, doce ou amargo; quando tais emoções são confiadas à memória, depois de passarem, digamos, por esse estômago, podem ali serem guardadas, mas já perderam o sabor. Seria ridículo comparar emoções e alimento como semelhantes. Contudo, elas não são totalmente diferentes.
  É ainda da memória que tiro a distinção entre as quatro emoções da alma: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza. Assim, todo raciocínio que eu teça, dividindo cada uma delas nas espécies de seus gêneros, definindo-as, é na memória que encontro o que tenho a dizer, e de lá tiro tudo o que digo. Contudo, ao recordar essas emoções, não me perturbo com nenhuma delas. E antes mesmo que eu as recordasse para discuti-las, elas ali estavam, e por isso puderam ser tiradas da memória mediante a lembrança. Talvez a lembrança tire da memória essas emoções como o ato de ruminar tira do estômago os alimentos. Mas então, por que aquele que rumina sobre tais paixões não sente na boca do pensamento a doçura da alegria ou a amargura da tristeza? Estará justamente nisto a diferença entre tais fatos? De fato, quem gostaria de falar dessas emoções se, todas as vezes que falássemos do medo ou da tristeza, nos víssemos tristes ou temerosos?
  Contudo, certamente não poderíamos falar deles se não encontrássemos na memória não só os sons dessas palavras, segundo a imagem gravada em nós pelos sentidos, mas ainda as noções que elas exprimem. Essas noções, nós não a recebemos por nenhuma porta da carne, mas a própria alma, sentindo-as pela experiência das próprias emoções, confiou-as à memória; ou então a própria memória as reteve, sem que ninguém lhas confiasse.

(Continua...)

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