sábado, 28 de maio de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO - Parte 40

DE  MAGISTRO  ( DO  MESTRE)  

CAPÍTULO  I 
FINALIDADE DA LINGUAGEM 

 


AGOSTINHO 
  – Qual te parece ser nossa intenção quando falamos? 
ADEODATO 
  – Pelo que me acode ao espírito agora, eu diria ou ensinar ou aprender.
AGOSTINHO 
  – Com uma dessas coisas eu concordo; de fato, é evidente que quando falamos queremos ensinar; todavia, como aprender?
ADEODATO 
  – Mas diga-me, pensas que se pode aprender sem perguntar?
AGOSTINHO 
  – Mesmo neste caso, creio que só queremos ensinar. Diga-me pois, nossas perguntas terão outro motivo que não ensinar o que queremos àquele a quem perguntamos? 
ADEODATO 
  – Dizes a verdade.
AGOSTINHO  
  – Vês, pois, que nosso propósito ao falar é apenas ensinar.
ADEODATO
  – Para mim ainda não está claro; ora, se falar nada mais é que emitir palavras, também as emitidos ao cantar; às vezes falamos sozinhos, sem um interlocutor que possa aprender; em tais casos, não creio que pretendamos ensinar algo. 
AGOSTINHO  
  – Creio, contudo, que há certa maneira de ensinar pela recordação, processo certamente valioso, como teremos ocasião de ver em nossa conversação. Ora, se opinas que ao recordarmos não aprendemos, ou que nada ensina aquele que recorda, eu não me oponho; e desde já afirmo que é dupla a finalidade da palavra: para ensinar ou para despertar reminiscências nos outros ou em nós mesmos; e isto ocorre também quando cantamos, concordas? 
ADEODATO 
  – Não, absolutamente, pois é bem raro que eu cante para lembrar-me, mas é bem freqüente que o faça para deleitar-me. 
AGOSTINHO  
  – Compreendo a tua idéia; mas não percebes que o que te deleita no canto é apenas uma certa modulação do som, que, pelo fato de se poder associar ou não às palavras, faz com que uma coisa seja o falar e outra o cantar? Na verdade, também com a flauta e a cítara se modulam os sons, cantam também os pássaros, e nós mesmos, às vezes, entoamos um motivo musical sem palavras, o que se pode chamar canto, mas não fala; tens alguma objeção a isto? 
ADEODATO 
 – Nenhuma.
AGOSTINHO 
  – Aceitas, pois, que a palavra só foi instituída para ensinar e recordar?
ADEODATO 
  – Poderia concordar, se não me levasse a opinar diversamente o fato de que, ao orarmos, nós sem dúvida falamos, e, certamente não é lícito crer que ensinamos ou recordamos algo a Deus.
AGOSTINHO 
  – Suspeito que não sabes que, se nos foi dito para orarmos em lugares fechados, significando com isso o espaço secreto da alma, o foi porque Deus não quer ser lembrado de algo ou ensinado por nossas palavras, para atender a nossos desejos. Quem fala, pois, manifesta exteriormente sua vontade articulando o som: mas nós devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais profundo recesso da alma racional, a que se chama o homem interior; quis Ele que fosse este o seu templo. Não leste no Apóstolo: “Não sabeis que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus habita em vós”, e que “Cristo habita no homem interior?” E não atentastenas palavras do Profeta: “Falai dentro dos vossos corações, e nos vossos leitos arrependei-vos; oferecei os sacrifícios da justiça e confiai no Senhor”?
  Onde crês que se possam oferecer os sacrifícios da justiça, a não ser no templo da mente e no íntimo do coração? Onde se fizer o sacrifício, aí também se há de orar. Por isso, não são necessárias palavras quando oramos, isto é, palavras soantes, exceto, talvez, no caso do sacerdote que exprime em palavras seu pensamento, mas não para que Deus ouça, e sim os homens e, envolvidos na recordação, sejam elevados até Deus. Ou não pensas assim?
ADEODATO     
  – Concordo plenamente.
AGOSTINHO 
  – Não te preocupas pois o fato de que o Mestre supremo, ensinando a orar aos seus discípulos, ensinou certas e determinadas palavras, parecendo não ter feito outra coisa que ensinar as palavras a serem empregadas quando rezamos? 
ADEODATO 
  – Isso não me preocupa absolutamente, pois não lhes ensinou palavras; e sim, pelas palavras, aquilo que deveriam saber quanto a quem e o que haviam de pedir na oração, como foi dito, no segredo do coração.
AGOSTINHO 
  – Entendeste corretamente: creio que também notaste, apesar de nem todos concordarem que, mesmo sem emitir som algum, nós falamos quando interiormente articulamos as palavras em nossa mente; assim, com as palavras que emitimos, o que fazemos é apenas chamar a atenção; entretanto, a memória das coisas, à qual as palavras estão associadas, provoca-as e faz com que venham à mente as próprias coisas, das quais as palavras são sinais. 
ADEODATO 
  – Compreendo e concordo contigo. 

CAPÍTULO  II
O HOMEM MOSTRA O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS
SÓ PELAS PALAVRAS 



AGOSTINHO 
  – Nós concordamos, portanto, em que as palavras são sinais.
ADEODATO 
 – Concordamos.
AGOSTINHO 
  – Então, podemos chamar assim a um sinal que nada signifique?
ADEODATO 
  – Não. 
AGOSTINHO 
  – Quantas palavras há neste verso: “Si nihil ex tanta superis placet urbe relinqui”?
ADEODATO 
  – Oito. 
AGOSTINHO 
  – Logo, oito são os sinais.
ADEODATO
   – É mesmo.
AGOSTINHO 
  – Creio que compreendes este verso.
ADEODATO 
  – Parece-me que sim.
AGOSTINHO   
– Dize-me o sentido de cada palavra.  
ADEODATO 
  – Sei o que significa o “si”, mas não encontro um sinônimo para expressar-lhe o
significado.
AGOSTINHO 
  – Sabes indicar, ao menos, em que campo está seu significado?
ADEODATO 
  – Parece-me que o “si” expressa dúvida: mas onde está a dúvida, senão no espírito?
AGOSTINHO 
  – Por enquanto, aceito; continua.
ADEODATO 
 – “Nihil” que outra coisa significa senão o que não existe?
AGOSTINHO 
  – Talvez fales com acerto, porém a afirmação anterior me impede de concordar contigo: que não existe sinal sem que signifique algo; ora, o nada de modo algum pode ser alguma coisa. Por isso, a segunda palavra deste verso não seria, pois, um sinal, uma vez que nada significa; e então, teríamos errado ao concordar que todas as palavras são sinais, ou que todo sinal signifique algo.
ADEODATO 
  – Estás me apertando demais; observa todavia que, se não tivermos nada para expressar, seria sem dúvida tolice proferimos alguma palavra; creio que tu, ao falar agora comigo, nada do que disseste foi inútil, mas que, com os demais sons que saem da tua boca, ofereces-me sinais para que eu entenda algo; não precisarias ter pronunciado essas duas sílabas (ni-hil) se elas não significassem algo. No entanto, se entendes que com elas necessariamente se gera um enunciado e que elas, ao atingir nossos ouvidos, nos ensinam ou lembram algo, logo entenderás o que eu queria dizer, mas não posso explicar. 
AGOSTINHO 
  – Que faremos então? Poderemos afirmar que esta palavra (nihil), mais do que a própria coisa, que não tem existência em si, significa aquele estado da alma que se gera quando não se vê a coisa e, no entanto, percebe-se ou se pensa ter percebido que a coisa não existe?
ADEODATO 
  – É bem isso que eu procurava explicar. 
AGOSTINHO  
  – Seja lá como for, vamos em frente, para não cairmos no maior absurdo de todos. 
ADEODATO 
  – Qual? 
AGOSTINHO 
  – Que “nada” nos detenha e que, no entanto, a nossa conversa fique parada. 
ADEODATO 
  – De fato é ridículo e, mesmo não atinando como isso pode acontecer, vejo claramente
que já ocorreu.
AGOSTINHO
  – Se Deus quiser, no momento oportuno compreenderemos melhor este gênero de absurdo; agora volta àquele verso e procura mostrar, conforme teu entendimento, o que significam as demais palavras.
ADEODATO 
  – A terceira, “ex”, é uma preposição, que poderíamos substituir por “de”.
AGOSTINHO 
  – Veja, não estou te pedindo que troques uma palavra conhecidíssima por outra igualmente conhecida, de mesmo significado, suposto que signifique o mesmo; contudo, por enquanto, admitamos que seja assim. Certamente, se o poeta, no lugar de dizer “ex tanta urbe”, e eu indagasse o que significa “de”, responderias “ex”, sendo que estas duas palavras, isto é, sinais, têm – como tu crês – o mesmo significado; eu, porém, busco esta mesma coisa, não sei se una e idêntica, que tais sinais significam. 
ADEODATO 
  – Parece-me que signifique a separação de algo do lugar em que estava contido e ao qual pensa se pertencer; quer porque essa coisa já não exista, como acontece neste verso, onde sem existir mais a cidade (de Tróia) subsistiram dela alguns troianos, quer porque permaneça, como ocorre ao afirmarmos haver na África uns comerciantes vindos da cidade de Roma. 
AGOSTINHO 
  – Para admitir que é assim que se passa, não irei enumerar todas as objeções que se poderiam apresentar a essa tua regra; mas facilmente podes perceber que explicaste palavras com outras palavras, isto é, sinais com outros sinais, coisas conhecidíssimas com outras também conhecidas; porém gostaria que, se te for possível, me mostrasses as coisas em si, de que tais palavras são os sinais. 

CAPÍTULO  III
SE É POSSÍVEL MOSTRAR ALGUMA COISA
SEM O EMPREGO DE UM SINAL


ADEODATO 
  – É bem estranho que não saibas, ou melhor, que simules não saber, que não é possível obter de mim uma resposta satisfatória ao teu desejo; pelo fato de estarmos conversando, simplesmente não podemos responder senão com palavras. Todavia, indagas de mim coisas que de modo nenhum pode ser consideradas palavras; e, no entanto, também sobre essas tu me interrogas com palavras. Começa tu a interrogar-me sem palavras, para que depois eu te possa responder à altura.
AGOSTINHO 
  – Admito que tens razão; contudo, se te perguntasse o significado dessas três sílabas: “paries” (parede), creio que poderias apontar-me com o dedo, para que eu visse a coisa em si, de que esta palavra de três sílabas é o sinal, demonstrando-a e indicando-a tu mesmo, sem necessitar de palavra alguma.
ADEODATO 
  – Certamente que se pode fazê-lo, mas só com aqueles nomes que significam corpos e desde que tais corpos estejam presentes.
AGOSTINHO 
  – Mas à cor, talvez, podemos chamar corpo, ou, antes, uma qualidade do corpo?
ADEODATO 
  – Uma qualidade.
AGOSTINHO 
  – Com que, então, também a cor se pode apontar com o dedo? Ou ainda acrescentas aos corpos suas qualidades, de modo que elas também possam ser demonstradas sem palavras, desde que presentes?
ADEODATO 
  – Eu, ao falar dos corpos, quis significar tudo o que é corpóreo, isto é, tudo o que nos corpos se percebe.
AGOSTINHO 
  – Considera, porém, se mesmo nisso não terás de abrir alguma exceção.
ADEODATO 
  – A advertência é justa; de fato, não deveria dizer todas as coisas corpóreas, mas todas as coisas visíveis. Admito que o som, o cheiro, o sabor, a gravidade, o calor e muitas outras coisas que recaem sob os outros sentidos, embora não se possam perceber sem que estejam associadas aos corpos, e portanto a estes dizem respeito, não se podem, todavia, apontar com o dedo.
AGOSTINHO 
  – Diga-me, nunca viste alguém conversar com os surdos por gestos, e os próprios surdos entrei si também por gestos, perguntam, respondem, ensinam ou indicam tudo o que querem, ou quase tudo? Se é assim, então podemos indicar sem palavras não as coisas visíveis, mas também os sons, os sabores e as outrascoisas semelhantes. Também os histriões, nos teatros, expõem sem palavras e interpretam peças inteiras, na maioria das vezes através de mímica. 
ADEODATO 
  – Nada tenho a opor-te, a não ser aquele “ex” (de), não só eu, mas nem mesmo o melhor dos histriões poderia demonstrar-te, sem palavras, o que significa. 
AGOSTINHO 
  – Talvez isto seja verdade, mas vamos supor que ele possa; não duvidas certamente, como creio, que, qualquer que seja o gestual que adote para tentar demonstrar a coisa que é significada por esta palavra, não será a coisa em si mesma, porém em seu sinal. Por isso, ele também terá indicado, se não uma palavra com  outra palavra, pelo menos um sinal com outro sinal; assim, este monossílabo “ex” e aquele seu gesto significarão a mesma coisa que eu pedi que me demonstrasses sem sinais. 
ADEODATO 
  – Mas, rogo-te, como é possível o que tu estás pedindo?
AGOSTINHO 
  – Do mesmo modo que o foi para a parede.
ADEODATO 
  – Mas também esta, pelo desenvolvimento do nosso raciocínio, não pode ser indicada sem sinal. Pois o ato de apontar o dedo certamente não é a parede em si, mas apenas um dos possíveis sinais, por meio de que a parede pode ser observada. Não vejo, portanto, nada que possa ser indicado sem sinais.
AGOSTINHO 
  – Se, porém, te perguntasse o que é caminhar, e tu te levantasses e fizesses aquela ação, não usarias da própria coisa para ensinar-me, em vez de usar palavras ou outros sinais?
ADEODATO 
  – Admito que assim é, e tenho pejo de não ter observado coisa tão evidente, que me traz à memória milhares de coisas, indicativas por si mesmas, e não pelos sinais com que as mostramos, como sejam: comer, beber, estar sentado, ficar de pé, gritar e inúmeras coisas.
AGOSTINHO 
  – E dize-me então: se eu desconhecesse o significado da palavra e te perguntasse, enquanto caminhas, o que é caminhar, como mo explicaria?
ADEODATO 
  – Continuaria o mesmo ato de caminhar, mas um pouco mais depressa, para que a novidade introduzida despertasse a atenção; e, todavia, não teria feito coisa diversa do que pretendia te mostrar.
AGOSTINHO 
  – Não sabes pois que uma coisa é caminhar e outra é andar depressa? 
  Ora, caminhar não é o mesmo que andar depressa, e quem anda depressa, não quer dizer que caminhe: ainda mais que podemos meter pressa no ler, no escrever, e em muitíssimas outras coisas. Por isso, se após minha indagação fizesses mais depressa o que fazia antes, eu seria induzido a crer que caminhar outra coisa não é do que se apressar, uma vez que a novidade introduzida foi a pressa, e eu com isto seria levado a engano. 
ADEODATO 
  – Confesso que não é possível prescindir de sinais, se formos inquiridos no curso da ação; pois, se nada for acrescentado à ação que estamos realizando, nosso interlocutor poderá supor que não queremos responder-lhe, ignorando-o, continuamos a nossa ação. Mas se alguém nos indagar de coisas que podemos fazer, não enquanto as fazemos, podemos mostrar-lhe a própria coisa fazendo-a, antes que com um sinal, em resposta ao que ele pergunta. A não ser que ele me pergunte, enquanto falo, o que é falar: porque qualquer coisa que lhe disser para explicar-lhe isso, sempre o farei falando; e falarei para ensiná-lo até que lhe fique perfeitamente claro o que desejava saber, sem afastar-me da própria coisa que desejava demonstrar, nem procurar sinais com que demonstrá-la. 

(Continua...)

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