terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Revolta na Ucrânia, o relato de um jesuíta



David Nazar conta como foram os últimos trágicos dias de confrontos em Kiev.

 

 
Pessoas pedem por ajuda, na Praça Maidan: "Nunca estive em um país onde há tal devoção pela alma da nação".

Os jesuítas em Kiev e em Lviv estão ajudando como podem. Apesar da violência do dia 20 de fevereiro ou, melhor, por causa dela, o apoio ao presidente Yanukovych está desmoronando. Ele nunca teve um forte apoio, mas, com base na Constituição e através da corrupção, ele tem um poder enorme. Hoje, porém, as coisas estão completamente diferentes. Comecemos pelo dia 19 de fevereiro.
O ministro do Interior, que controla as várias forças policiais, declarou publicamente que não haveria um ataque à Praça Maidan e nenhum estado de emergência, apesar de rumores em contrário que vazaram. Enquanto todos os parlamentares estavam reunidos, incrivelmente começou um ataque. As forças especiais cercaram a Praça Maidan e fecharam todos os acessos em uma dúzia de ruas diferentes, porque as pessoas vêm quando há uma ameaça. O administrador da cidade, que não é o prefeito, mas é nomeado diretamente pelo presidente, decidiu ilegalmente fechar todas as linhas de metrô. A polícia local montou postos de bloqueio nas principais estradas que levam a Kiev, porque as pessoas vêm de todo o país quando há uma ameaça.
Todos os trens provenientes da Ucrânia ocidental, central e setentrional foram atrasados, enquanto a polícia revistava os passageiros "por causa das bombas nas suas cestas de verduras". Um dos nossos jovens jesuítas estava entre esses viajantes . A situação era absurda, e os policiais riam envergonhados, mas tinham ordens para fazer isso. Os habitantes de Kiev quebraram a barreira policial, e em pouco se reuniram cerca de 20 mil pessoas na praça. A polícia usava constantemente pistolas elétricas, bombas de efeito moral, coquetéis molotov, canhões de água e fuzis. As pessoas fazem três coisas toda vez que isso acontece: ateiam fogo em pneus para criar fumaça e reduzir a visibilidade, jogam pedras removidas das ruas e arremessam coquetéis molotov a uma certa distância. As câmeras constantemente registram os eventos, e nunca se viu uma arma de fogo nas mãos dos manifestantes, apesar das declarações do governo em sentido contrário.
Quando a polícia rompeu algumas barricadas, os manifestantes desarmados fugiram, deslocando-se para o centro. Na sua retirada, foram atingidos e mortos na rua. O ministro do Interior declarou solenemente que as forças especiais e a polícia não têm armas de fogo. As câmeras mostram claramente que elas disparam mais de uma vez. O hospital informou que, dos primeiros 25 mortos, 19 ocorreram por armas de fogo. As únicas pessoas que atiravam eram as forças especiais. As câmeras mostraram os cartuchos, alguns não explodidos.

Depois, o ministro declarou que os manifestantes estavam disparando contra outros manifestantes para lançar uma luz ruim sobre o governo. Observando as gravações e dadas as verificações realizadas pelos médicos, além de outras provas claras, é preciso pensar que o governo deveria inventar mentiras mais convincentes ou fornecer outra desculpa para o uso de munições reais.

Eu relato tudo isso porque é muito absurdo e explica o que está acontecendo. Os diplomatas viram: eles caminham pela praça, como todos, recebem as notícias na TV e na internet, como todos e, depois, incrédulos, ouvem o que o governo diz.

Na noite do grande ataque, o principal canal de notícias ficou fora do ar em todo o país. Esse canal mantém câmeras ao vivo da praça. Todas as outras redes de televisão estavam em operação. Essa rede de TV esperava por isso e, depois de um pouco de confusão, encontrou uma forma alternativa para transmitir ao vivo da praça.

Há filas de carros de quilômetros de comprimento nas estradas que levam a Kiev, bloqueadas por veículos pesados. O motivo oficial seria alguns engarrafamentos, como relatado com um sorriso envergonhado pela polícia rodoviária; ninguém consegue esconder as mentiras. No dia 20 de fevereiro, o governo disse que os trilhos ferroviários entre a Ucrânia ocidental e Kiev precisavam de reparos, e os trens não podiam viajar. O presidente adotou o estado de emergência, sem declará-lo formalmente.

No dia anterior, 26 membros do seu próprio partido (Partido das Regiões) fretaram um avião para Viena. Desse modo, não podem aprovar mais idiotices propostas por ele. Um membro do partido disse que cada voto exigido recebia um pagamento de 10 mil dólares. Os principais oligarcas que controlam cerca de 30% do partido se posicionaram publicamente contra ele. No entanto, a Constituição e o sistema de corrupção conferem ao presidente tanto poder a ponto de tornar difícil uma mudança de acordo com as leis.

Em princípio, todos sabem essas coisas e muito mais. Então, o que fazer? Esperar uma solução pacífica? Depois dos tiroteios do dia 20, dos ataques e das mentiras públicas, que opções existem? Outro membro do partido declarou que toda ordem provém do presidente. Até mesmo o inteligentíssimo ministro do Interior disse que não tinha ordenado que as forças especiais atacassem.

Em todos os níveis do governo, há pessoas contrárias a isso e deixam informações vazar: os ataques iminentes, quem dá ordens, que armas são usadas etc. O navio do presidente faz água por todos os lados. A maior parte dos manifestantes quer esperar paciente e pacificamente, mas alguns estão perdendo a paciência e a confiança na perspectiva de um diálogo diante das muitas mentiras.

Quando se pergunta por que o governo faria isso, é preciso circunscrever a pergunta ao presidente e ao seu círculo de 4-5 ministros que acumularam bilhões ilegalmente. Eles só podem imaginar aprisionar ou matar a oposição. Qualquer compromisso que se traduza em uma redução do poder, para eles, significaria perder riqueza e acabar na cadeia. Não tendo feito anteriormente uma pequena concessão, Yanukovych se colocou de costas para o muro.

Circulou um boato de que ele queria deixar o cargo e o país. Portanto, não se trata do governo como um todo, que em si mesmo não é um grupo de alto perfil moral, mas de poucos que detêm a riqueza, da polícia e de delinquentes de rua – e isso diz muito. Os vândalos pagos começaram a se vestir com as cores dos manifestantes e a vagar pela cidade à noite. Atearam fogo em cerca de 50 carros de manifestantes estacionados na frente das casas. Na noite do dia 18, mataram um jornalista que dava informações que não agradavam ao governo. Há testemunhas, e mesmo assim o governo não reage.

Mesmo os mais impacientes ou radicais entre os manifestantes fizeram algumas coisas. Em primeiro lugar, e em sua maioria pacificamente, ocuparam prédios da polícia e escritórios administrativos presidenciais em todo o país. Em alguns casos, destruíram essas propriedades, mas só essas. Tratou-se de atos de desafio contra o presidente em pessoa. O que é interessante é que outros manifestantes tentam impedir mais danos.

Em diversos casos, cercaram os prédios da polícia, pedindo que os agentes saíssem e fossem para casa, o que a polícia fez de forma pacífica, sem incidentes. Diversos responsáveis regionais nomeados pelo presidente se demitiram logo após da escalada da violência. Outros foram obrigados a se demitir pelos habitantes locais. Em Lviv, o prefeito pediu que os manifestantes organizassem patrulhas noturnas para evitar que atos imprudentes fossem cometidos.

Um dos nossos jesuítas participa dessas rondas, que patrulham os bairros onde poderia haver riscos para edifícios como o Consulado russo, bancos ou centros comerciais de propriedade de membros do partido do presidente. É realmente impressionante ver o orgulho cívico e o senso de responsabilidade no lugar da polícia: o país tem uma alma, e as pessoas a assumem.

Eu nunca estive em um país onde há tal devoção pela alma da nação. Talvez porque aqui tanto sofrimento foi vivido, sangue foi derramado, houve tanta repressão, e o sofrimento de um se torna de todos. É o motivo pelo qual as pessoas acorrem à Maidan. Um está ao lado do outro, arriscando a vida pela Ucrânia, a terra, a unidade nacional, a fraternidade etc.

Na Maidan, repetem-se orações e o hino nacional, ouvido até centena de vezes por dia. Os sacerdotes permanecem com as pessoas na praça. Eparquias e dioceses convidam para rezar a cada hora em todo o país. Foram proclamados dias de jejum, e a Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia (sob o Patriarcado de Moscou) também tomou posição contra o governo. Esse é um fato raro. Não havia sacerdotes com as tropas a partir do momento em que elas fizeram o seu aparecimento com ônibus nos momentos dos ataques. Os sacerdotes se aproximaram dos agentes quando eles se alinhavam e rezaram diante deles. O papa também expressou uma oração de apoio ao país e contra a violência. A notícia circulou em toda a parte e foi repetida muitas vezes na televisão.

A Igreja oferece uma voz de equilíbrio e de moderação, contra o mal e por uma resolução pacífica através do diálogo. Isso é o que a maioria quer, mas a tentação é a de perder a paciência. A voz da Igreja continua forte. As demandas do povo não são somente por um conceito ideológico de democracia qualquer, mas existe uma corrupção endêmica e uma manipulação nos mais altos níveis de governo que mantêm as pessoas pobres. Nega-se a justiça, emitem-se condenações com bases discutíveis e limita-se o desenvolvimento econômico.

Nas prisões, há 150 mil pessoas, três vezes mais do que a média europeia. Cerca de 38 mil aguardam julgamento, alguns há 12 anos. Cerca de 95% deles sofrem de hepatite. Esse tipo de estatística é encontrada em diversos âmbitos. Não existe um plano, ideologia, visão de um bem superior ou qualquer ideal que oriente o presidente e os seus amigos.

Na Cidade de Deus, Santo Agostinho fala de fiéis individuais que fazem a diferença através do comportamento pessoal. Na Ucrânia, esse esforço é coletivo: o sistema deve melhorar para todos ou para ninguém. E, mais uma vez, a batalha é contra uma forma de mal: furto, injustiça, falsidade, homicídio etc. Agostinho diz que o mal não pode ser racionalmente compreendido, como nesse caso. Não há uma explicação para certas ações e para a falta de ações corretas por parte do presidente, se não o medo.

O dia 19 de fevereiro foi o dia mais trágico de todos esses três meses. Ao menos 26 foram vítimas, dos quais 19 mortos pelas forças especiais. O presidente, citando apenas pela segunda vez desde novembro a perda de vidas humanas, proclamou um dia de luto oficial, que coincidiu com a chegada de três ministros do Exterior europeus.

O dia prometia ser mais calmo, mas, de manhã, as tropas atacaram a Maidan. Atiradores de elite se posicionaram nos telhados e atiravam livremente entre a multidão. Parece que logo houve mais 20 mortes e outras dez no decorrer do dia. Uma câmera mostra os atiradores enquanto disparam. Os médicos verificaram que os tiros atingiam a cabeça, o tórax e o coração: ação de profissionais. Como se explica que tal ordem tenha sido dada em um dia de luto nacional, enquanto chegavam altos representantes estrangeiros? É irracional.

Outro elemento que ainda não foi comprovado, mas cuja evidência ganha cada vez mais corpo, é que os atiradores de elite e as forças especiais vêm da Rússia. Um certo número de pessoas que foram sequestradas e espancadas afirmam que os agressores falavam com elas em russo, com o sotaque da Rússia, e nunca em ucraniano. Isso tem um sentido: os ucranianos detestam fazer o mal, mesmo sob ordem do governo.

Durante a Revolução Laranja de 2004, em que Yanukovych foi derrotado, a polícia, as forças de segurança e o exército se recusaram publicamente a combater contra o povo. Eles declararam que estavam do lado do povo, e não do governo. Yanukovych nunca perdoou a Revolução Laranja, e em 2010, quando ele se tornou presidente, os seus guarda-costas pessoais chegaram da Rússia, causando um notável escândalo.

Mais uma vez, ele tem medo e não confia nos seus. É totalmente crível, portanto, que o único modo pelo qual eles poderiam fazer com que as tropas atirem contra o "próprio povo" é trazendo forças especiais russas.

Diversas divisões das forças especiais ucranianas se recusaram a deixar as suas guarnições regionais para chegar a Kiev e combater. Cerca de cem soldados, no dia 20 de fevereiro, foram para a Maidan desarmados, dizendo que estavam com o povo e que não queriam receber ordens do presidente. A presença russa não deve ser entendida como uma interferência direta da Rússia, mas como uma decisão de Yanukovych de confiar nas tropas em que pode confiar e que pode pagar generosamente. No entanto, jogará uma mancha pesada sobre a Rússia quando a verdade vier à tona.

Agora é importante rezar e jejuar. Sacerdotes guiam regularmente a oração na Maidan. Acho que agora, com tantas deserções no partido do presidente, haverá uma reviravolta. A França pediu a renúncia, e eu acredito que, se a União Europeia e os Estados Unidos insistirem com as sanções, isso vai acontecer.

Popoli, 21-02-2014.

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