IHU - Rafael C. Fornasier, mestre em Antropologia
teológica, doutorando em Ciências do Matrimônio e da Família e assessor
da Comissão E. P. para a Vida e a Família da CNBB,
elaborou a reflexão que publicamos a seguir como uma contribuição para o
debate sobre o tema do próximo Sínodo dos Bispos e que tem sido
amplamente acompanhado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Eis o artigo.
1 – Partindo dos Lineamenta
No trecho do questionário relativo à terceira parte da Relatio Synodi – dedicada às perspectivas pastorais (cf. 23-46) – se afirma que o Sínodo
extraordinário iniciou uma “viragem pastoral”, e que esta deve ser
levada adiante em seus aprofundamentos e implementação, evitando-se
“começar de zero” no caminho já iniciado pelo processo sinodal.
E, antes das perguntas relativas (cf. 35-39) ao tópico intitulado Cuidar das famílias feridas (separados, divorciados não recasados, divorciados recasados, família monoparentais), se insiste, citando a Evangelii gaudium, na necessidade de encrementar a arte do acompanhamento, da proximidade com as diversas situações.
Quanto às motivações que conduzem hoje a se refletir sobre essa viragem pastoral, sobretudo no que concerne a situação dos divorciados recasados, fazem-se necessárias algumas observações:
a – O acompanhamento pessoal como critério de mudança
A perspectiva do acompanhamento das pessoas, ou do desenvolvimento de
uma pastoral de proximidade, deve nortear qualquer proposta que venha a
sugerir mudanças no modus operandi da aplicação do direito canônico, da doutrina da Igreja sobre os divorciados recasados
e, consequentemente, da ação pastoral quotidiana, sob pena de se
pretender dar soluções que vão no sentido contrário do que se intenta,
isto é, uma maior acolhida mais humana e menos “burocrática”, segundo a
misericórdia e a verdade em relação à vida e às situações concretas das
pessoas de nosso tempo. O Papa Francisco, no dia 07 de dezembro de 2014, ou seja, após o Sínodo, afirmou ao Jornal Lanación:
“E no caso dos divorciados recasados, colocamo-nos: que podemos fazer
para eles, que porta se lhes pode abrir? E foi uma inquietação patoral:
então, vamos lhes dar a comunhão? Não é uma solução se lhes damos a
comunhão. Só isso não é a solução: a solução é a integração.”
b – A viragem pastoral exige uma conversão pastoral com criativa caridade
Para fins de ação pastoral mais consequente ou cada vez mais consequente em relação à vida dos divorciados recasados
no seio da Igreja hoje, se evoca a necessidade de se assumir a
realidade do aumento do número de divorciados no mundo. A ênfase dada ao
aumento do número dos divorciados recasados no mundo tem, no entanto,
obnubilado o aumento, mais significativo em número na atualidade, das
uniões consensuais (no Brasil; em torno a 36% da
população de casais; unidos somente no civi: 17%; casados no civil e no
religioso: 42%) e das famílias monoparentais (7 milhões de lares no
universo de 57 milhões de lares no país. Esta quantidade de lares é
igual, se não for maior, ao número de lares de casais em segunda união
segundo os dados do IBGE). Segundo esses dados, não só no Brasil,
mas em outras partes do mundo, se começa a falar de declínio do número
dos divorciados recasados, algo que se constatará com muito mais
acuidade daqui a dez anos. Portanto, dar ênfase à situação dos divorciados recasados é realismo até certo ponto!
Embora essa comparação em números não exima a Igreja de se debruçar
com mais caridade sobre a situação dos casais em nova união, ela revela
um certo desequilíbrio, para não dizer grande disparidade de atitude, na
proposta de alguns membros do clero, teólogos, pastoralistas e leigos
que se preocupam com uma mudança na Igreja, a fim de que esta seja mais
misericordiosa, pois negligenciam não só os divorciados não recasados,
mas também as uniões consensuais e as famílias monoparentais, para os
quais pouco ou nada é feito hoje na ação pastoral, enquanto – sobretudo
no caso do Brasil – temos muitas atividades com casais em nova união.
A ousadia que se pretende na ação pastoral da Igreja para com os
casais em segunda união deverá – ou deveria - também motivar a ação
pastoral da Igreja em relação a essas e outras situações, como o sugere
os Lineamenta. Ademais, essa ousadia e criatividade pastorais
já poderiam estar atuantes de vários modos, ainda que sem o acesso aos
sacramentos da Eucaristia e Penitência, sem que se fira a mensagem de indissolubilidade do matrimônio.
Por exemplo, o Instrumentum laboris recordava a prática da
bênção pessoal para quem não pode receber a eucaristia (cf. 104). Essa é
realizada, em alguns países, incluindo algumas paróquias no Brasil,
com a acolhida dos casais de segunda união na continuidade da fila da
comunhão para receberem, individualmente, uma bênçao do ministro
ordenado. Por experiência, tal gesto faz uma enorme diferença! O Papa
emérito Bento XVI fez menção positiva a essa prática em um recente texto divulgado pelos meios de comunicação e publicado em um livro.
3 – Resolver problemas mais do que preveni-los?
Constata-se muita expectativa em mudanças de “regras” doutrinais, ou disciplinares, a partir de Roma,
para depois se tomar iniciativas de acolhida. A falta de uma criativa
caridade pastoral na prática do cotidiano de nossas Igrejas não mudará
com a mudança de “regras”, pois se o que se busca é trazer o sentimento
subjetivo de acolhida dos casais em segunda união pelo fato de terem
acesso, por exemplo, à Eucaristia,
um verdadeiro acompanhamento de sua situação, que também inclui, em
grande parte dos casos, a dor pela ruptura do primeiro casamento, requer
tempo e dedicação pastoral bastante ausente em alguns países. Essa
atidude inclui também este aspecto subjetivo da vida das pessoas,
colocado mais em evidência na atualidade, mas que deve, ao mesmo tempo,
ser orientado para não se cair em subjetivismos individualistas.
Há uma forte tendência na atualidade, apontada e criticada por
grandes filósofos, ao pragmatismo eficientista, da razão prática que
pretende dar respostas a tudo através da exaltação da técnica.
Pergunta-se se a Igreja também não corra o risco de tentar equacionar
rapidamente, com algumas decisões, certas situações difíceis da vida de
seus membros. Não se aceita hoje em dia estar diante de impasses não
resolvíveis ou de sofrimentos que não devam ser extirpados. A busca da
realização do prazer e da felicidade a todo custo indiretamente, ou
diretamente, também pode ter sérias influências no pensamento da ação
pastoral da Igreja. Não que a Igreja convide seus fieis a uma cega
resignação, pois concorda, por exemplo, com a separação de corpos quando a vida conjugal se torna insuportável para um dos cônjuges por razões graves.
Mas não se poderia admitir que, no caso de um casamento validamente
celebrado e rompido, ao qual se suceda uma nova união por parte de um
dos cônjuges ou dos dois, que essa nova união traga a marca de uma
ruptura, mesmo que essa nova união seja acolhida no seio da Igreja? Será
que não se tende a dar a todo custo respostas aos problemas das pessoas
na atualidade, como o fazem hoje vários âmbitos da medicina e do
direito?
Afirma-se, por alguns teólogos, que a Igreja seria mais severa para
com quem está em uma nova união do que para com aqueles que vão se
casar. No entanto, essa afirmação não é seguida de uma proposta concreta
em relação não só à preparação para o matrimônio mas também ao
acompanhamento da vida conjugal – como nos propõe os Lineamenta
- de tal maneira que haja maior prevenção das situações de conflito e
de ruptura da vida conjugal. Esse ainda é um campo vasto a ser
explorado. Durante muito tempo, e ainda é o caso em muitos lugares,
devido ao aumento de uma liberdade mais subjetiva e individualista e à
crescente privatização da família na atualidade, como o apontam vários
sociólogos, se temeu e se teme orientar os casais em sua vida
matrimonial, pois isso relevaria da vida “individual” e “privada” de
muitos. Além disso, há um enorme falta de preparo do clero e dos agentes de pastoral familiar. No entanto, tanto a Igreja como a sociedade sabem muito bem, através de pesquisas (cf. Caritas na Itália),
o quanto um divórcio não ajuda a família, a própria Igreja e a
sociedade. Mas, mesmo assim, as medidas sociais e pastorais propostas
para tentar evitar a separação ou o divórcio são muito tímidas ou
inexistentes.
Se com razão alguns teólogos apontam para uma visão jurisdicista
(contratual) do matrimônio, a culpa não é só – se é que há culpa – do
modo como o Código de Direito Canônico
define o matrimônio, mas também, e sobretudo, de como essa realidade se
viu pouco a pouco envelopada por um aspecto puramente formal, sem
maiores aprodudamentos de uma teologia da família, de carácter
personalista, como, de resto, Vaticano II já delineara e foi aprofundado por João Paul II
e outros na mesma esteira. Grosso modo, do lado do estudo do
sacramento, limitou-se aos seus aspectos canônico-jurídicos, sem uma
disciplina específica de uma teologia mais aprofundada do sacramento e
da própria vocação conjugal e familiar.
Nas últimas décadas, no âmbito da teologia moral, por um lado, parece
ter havido um estacionamento, repetindo supercialmente os princípios da
avaliação e das exigêndias dos atos lícitos e ilícitos, sem muita
confrontação com a realidade das pessoas; por outro lado, numa
perspectiva mais liberal, tentou-se justificar uma abertura da Igreja
aos métodos contraceptivos (um longo debate com Humanae vitae)
e a uma eventual mudança de perspectiva quanto à posição da doutrina da
Igreja relativa à indissolubilidade do matrimônio, numa tentativa de
acompanhar as mudanças sociais, confundido atitude profética com
conformismo. Tanto o lago mais rigorista quanto o mais laxista parecem
não ter lançando mão de algo que voltou com força neste Sínodo: a lei da gradualidade,
ou o caminho gradual feito por cada um de nós no conhecimento e na
vivência das exigências morais e no aprofundamento do mistério da vida
cristã. A isso se deu também o nome de pedagogia divina, ou seja, o modo como Deus nos guia, sem forçar ninguém, mas sempre propondo o ideal de santidade.
4 – Para onde o Sínodo nos orientará?
Não se pretende aqui, com essas reflexões, afastar o debate
teológico-doutrinal sobre modulações na compreensão e na aplicação
canônica e pastoral de posturas relativas aos casais em nova união civil.
Mas parece que o debate em torno à quetão do acesso aos sacramentos da
Eucaristia e da Penitência devem passar por ulteriores aprofundamentos;
como, aliás, sinalizaram alguns dos círculos menores de trabalho durante
o último Sínodo. Postura que não significaria retornar
à estaca zero, mas dar continuidade ao debate que tem sérias
implicações e assume várias possíveis soluções. Isso não signifca que
não se possa avançar mais no que tange a participação ativa e, por
conseguente, a acolhida dos casais em nova união no seio da Igreja.
Muito se poderia fazer, como já acontece no Brasil,
quanto aos encontros de casais e famílias nesta situação tanto com
outros casais e famílias quanto entre eles (lembre-se aqui o precioso
trabalho do grupo Bom Pastor no Brasil,
com grande capilaridade nacional, e de outros do mesmo tipo presentes
em nossas dioceses. É interessante notar, que os casais que participam
desses grupos não se levantaram para pedir ao Sínodo o acesso à comunhão eucarística).
A respeito da pastoral sacramental dos casais em segunda união, o n. 38 do questionário dos Lineamenta diz o seguinte: “A pastoral sacramental a favor dos divorciados recasados
precisa de um ulterior aprofundamento, avaliando também a prática
ortodoxa e tendo presente ‘a distinção entre situação objetiva de pecado
e circunstâncias atenuantes’ (n. 52). Quais são as perspetivas em que
agir? Quais os passos possíveis? Quais sugestões para resolver formas de
impedimentos indevidas ou desnecessárias?”
A primeira observação que deve ser feita é que a pergunta começa por
uma afirmação: é necessário um ulterior aprofundamento sobre a pastoral
sacramental. A afirmação sugere que esse ulterior aprofundamento será
realizado durante o próximo Sínodo ou para após o
Sínodo? É de se notar que a conexão entre a afirmação e as perguntas
propriamentes ditas nesta pergunta não deixe ao leitor uma límpida
compreensão do que se espera como resposta. No entanto, entando uma
interpretação da mesma, parece que se solicitam respostas que ajudem a
avançar no sentido deste aprofundamento. O n. 52 do texto, ao evocar uma
eventual possibilidade de acesso à comunhão por parte dos divorciados recasados
também fala de uma questão que “ainda deve ser aprofundada”. Esse
aprofundamento ulterior se justificaria mais ainda pelo fato de que não
se conhece com precisão essa “prática ortodoxa”, mencionada na pergunta
n. 38, que se liga – o leitor deve deduzir... – à menção de “um caminho
penitencial” no parágrafo n. 52. A pergunta n. 38 ainda retoma a
afirmação do parágrafo n. 52 sobre a questão da imputabilidade do ato,
com a qual – a experiência de conferências e encontros o demonstra – até
o clero tem dificuldades, quanto mais o fiel mais simples.
Tudo isso faz com que a pergunta, no final das contas, sugira
questões muito técnicas, com o risco de se esquecer que o parágrafo n.
52 do texto aponta duas posturas em relação à possibilidade de acesso à
comunhão por parte dos divorciados recasados. E para que o debate seja
imparcial, as duas posturas devem ser aprofundadas.
Não é intenção aqui fazer um aprofundamento pormenorizado sobre as
duas posturas. Contudo, é importante salientar, a respeito da postura
que sugere manter a doutrina atual da impossibilidade de acesso à
comunhão, o quanto essa posição tem sido tratada de modo simplório e sob
olhares preconceituosos que lhe aplicam taxativamente atributos
pejorativos, tornando sua sustentação quase arbitrária, como se fosse
destituída de fundamentação teológica. O que denota uma atitude
temerária. Por outro lado, o Sínodo também deveria
suscitar reflexões que demonstrem a atualidade desta postura com uma
linguagem convincente que dê conta de sua pertinência e sua manutenção.
Isso tudo é também contribuição do Sínodo e já aparecem publicações neste sentido.
No que concerne a postura que é favorável ao acesso à comunhão, a
proposta é avançada em circunstâncias bem precisas e o acesso não é
oferecido de forma generalizada (como o próprio W. Kasper o sugere em seu livro. Condições que emanaram de sua reflexão, retomando, em grande parte, as ideias de uma artigo de J. Ratzinger de 1972, cuja conclusão, no entanto, o Papa
emérito modicou no texto recentemente publicado e mencionado acima),
mas somente após um caminho penitencial, como apontado nos Linemanta
para a reflexão da Igreja. Sem declinar o confronto com a proposta,
percebe-se o quanto ela exige ulteriores aprofundamentos. Não é evidente
evocar uma “prática ortodoxa” como inspiração, pois, como o demonstra
E. Schockenhoff, teólogo favorável ao acesso à comunhão pelos recasados, a prática não é uniforme e levanta alguns questionamentos sobre a forma de penitência oferecida (cf. La Chiesa e i divorziati risposati. Questioni aperte. Brescia: Queriniana, 2014).
Em relação às condições sugeridas por W. Kasper para se conceder esse acesso à comunhão (cf. Il Vangelo della famiglia.
Brescia: Queriniana, 2014), talvez seja prático e fácil aplicá-lo em
uma Igreja sem muita expressão pastoral, como no caso de várias Igrejas
na Europa e nos EUA. Mas o acompanhamento pessoal
desses casos e o discenimento a ser feito sobre cada situação seria
aplicável e evidente numa Igreja em que se percebe que a “arte do
acompanhamento” não vem sendo trabalhada? Isso não requereria um tato e
uma maturidade que, caso faltem, podeia causar mais danos do que ajudar?
Isso não suscitaria o sentimento de exclusão – o que se pretende
eliminar – em alguns não “aprovados” de imediato à comunhão? Não resta
dúvida de que, se a Igreja assume esta postura, deverá realizar um
esforço hercúlio na estruturação de condições mínimas de acompanhamento
pessoal, o que deveria também ser o caso da preparação para o
matrimônio, para o aconselhamento e o atendimento a situações de
conflitos conjugais, a fim de se evitar tratar somente o problema sem
antes buscar preveni-lo.
4.a – Equidade pastoral: misericórdia e verdade se encontram
Outra realidade atual na vida de nossas comunidades – empiracamente
verificável, sobretudo em nossas comunidades menores - deve ser cada vez
mais levada em consideração: imediatamente após uma separação ou
divórcio, seguidos de grave traíção, a parte culpada não hesita em
frequentar a igreja sozinha ou, com frequência, já com outra pessoa.
Isso tem causado o abandono da outra parte da Igreja, por se sentir
humilhada na presença daquele ou daquela que a traiu gravamente e que,
além disso, já se encontra em relacinamento com outra pessoa. Isso
revela, por um lado, que o sentimento de exclusão, evocado por muitos em
defesa de maior abertura para com os recasados, está talvez mudando em
relação à percepção da existência do mal cometido. Por outro lado,
pode-se dizer que é um bom sinal que não tenham vergonha de frequentar a
vida da comunidade, e tem-se aí a oportunidade de uma evangelização em
vista também do arrependimento.
No caso em que o chamado “caminho penitencial”
lhes fosse aplicado – tendo ainda que se definir em que consistiria
esse caminho penitencial – e que o novo casal continuasse na comunidade,
pode-se dizer que se acolheu um casal divorciado recasado, o que é
positivo. No entanto, quais não são os sentimentos e a situação daquele
ou daquela que foi abandonado e que se afastou da Igreja, sem no entanto
ter contraído nova união por crer na validade do seu primeiro
casamento?...
Reflete-se muito sobre os casais recasados
que voltam à caminhada, incluindo os que foram abandonados e contraíram
uma nova união, mas reflete-se pouco ou nada sobre as pessoas que foram
abandonadas e que, por não aceitarem o abandono e acreditarem na
validade de seu casamento (e do amor que o fundou), não aceitam a nova
união do cônjuge que se foi. O agravante hoje é que o cônjuge que se foi
e se casou de novo na verdade não se foi e continua ao lado com a nova
família, causando assim o afastamento da primeira mulher ou do primeiro
marido da vida da comunidade. Ainda que a parte abandonada venha a
perdoar a traição da outra parte, como se espera de um bom cristão, a
comunidade local pode se deparar com um grande dilema nas situações dos recasados:
estar acolhendo um e afastando o outro! As soluções propostas,
quaisquer que sejam elas, não evitarão o confronto com tal dilema. Um
homem ou uma mulher que amou profundamente e exclusivamente alguém,
quando se vê traído(a) e abandonado(a) de modo injusto passa por um
processo de perda equiparado quase à morte de um ente querido, que não é
fácil enfrentar.
Um dos grandes argumentos avançados em favor da abertura do acesso à comunhão aos divorciados recasados
diz que não há pecado que não possa ser perdoado. Sem pretensões de
aqui refletir de modo apropriado sobre tal argumento, caberia repensar a
teologia do pecado em relação com a teologia do sacramento do
matrimônio, levando em consideração certas consequências temporais do
mal cometido. Com a devida reserva exigida pela categoria da analogia,
não se poderia dizer que quando a doutrina sobre o pecado atual diz que
um assassino é perdoado, mas mesmo assim deve pagar sua pena em
presídio, ou que o perdão a um grande corrupto implicaria a devolução do
que foi usurpado, isso não poderia ser mutatis mutandis
pensado em relação à “pena” do afastamento da comunhão pelos divorciados
recasados? Todavia, alguns recordam que houve quem teria dito que seria
então melhor matar sua ex-mulher, pois assim teria perdão, já que
enquanto ela estiver viva, ele continuaria num pecado que não tem
perdão. Mas, ao cumprir pena por seu assassinato, este homem não
perderia para sempre ou durante grande parte da sua vida a comunhão
permanente de sua nova mulher? Ainda que possa retornar à comunhão
eucarística pelo perdão, sofrerá uma consequência temporal do seu pecado
grave, não tendo a comunhão permanente com a mulher com quem se casou
novamente e sua comunhão com a comunidade eclesial fica também bastante
fragilizada, ainda que no presídio se possa criar esses laços de vida
cristã.
De fato, poder-se-ia aprofundar a questão do perdão para os casais recasados
com muito tempo de vida, onde a primeira união já não existe há muito
tempo, e em relação à qual não houve possibilidade de declaração de
nulidade. No entanto, esse perdão, sobretudo para um primeiro casamento
que se considerou válido e produziu frutos, incluindo a geração de
filhos, apagaria todas as consequências temporais da separação ou do
divórcio? Seria exagerado pensar que a ruptura do sacramento do
matrimônio, ruptura de uma comunhão íntima, mantenha-se “relembrada” pelo não acesso à Eucaristia, ou seja, à comunhão por excelência com Jesus Cristo, sobretudo que, para uma das partes, essa seraparão pode ainda significar ausência de comunhão com a pessoa amada, que era tudo para ela? A analogia entre a comunhão perfeita de Cristo e a Igreja e o homem e o mulher no sacramento do matrimônio não nos autorizaria a refletir neste sentido?
Mais uma vez se pode dizer que, ainda que se espere um perdão dado
pelo homem ou a mulher injustamente abandonados num casamento que tenha
durado alguns anos, e em relação ao qual não há como se declarar
nulidade, imagina-se que seria de difícil aceitação para a parte
abandonada e filhos reconhecer que a Igreja acolhe e reconhece a nova comunhão de vida daquele que se foi e o recebe à plena comunhão na Eucaristia, enquanto à parte abandonado, ainda que possa ter acesso à comunhão eucarística, se vê privada da comunhão
de vida estabelecida pelo sacramento do matrimônio. Seria isso uma
atitude equânime pastoralmente falando? Obviamente que nem todos estão
nesta situação, mas, pelo fato de haver um número considerável que aí se
encontra, a proposta do acesso à comunhão eucarística aos casais em
nova união deve ser muito bem pesada.
Neste contexto, caberia também aprofundar o tema da comunhão espiritual,
como apontado no n. 53, e responder à objeção que diz que quem recebe
Cristo espiritualmente poderia também recebê-lo sacramentalmente
(aprofundamento precioso sobre o tema é dado por J. J. Pérez-Soba; S. Kampowski. Il vangelo della famiglia nel dibattito sinodale: oltre la proposta del Cardinal Kasper.
Siena: Cantagalli, 2014, p. 138s.). A distinção sobre os graus e modos
de presença de Cristo na Igreja (na Palavra, na assembleia, na
Eucaristia, no celebrante e em todo batizado) e noutras confissões
cristãs (mesmo não participando da Eucaristia, encontram e vivem com o
Cristo) e no mundo (nos pequeninos e sofredores, e nas pessoas de
boa-vontade etc.) pode elucidar a participação diferenciada no mistério
da vida de Cristo.
Ademais, um recurso à teologia de Santo Tomás de Aquino
sobre o sacramento da Eucaristia nos ajudaria a recordar que os efeitos
salvíficos desse sacramento não estão vinculados à comunhão
eucarística, mas são aplicados a todos participantes da celebração do
mesmo e sobre toda a humanidade. A isso, acrescente-se a necessidade de
uma maior conscientização sobre a recepção da comunhão, aparentemente
banalizada em nossos tempos. Como também o Papa emérito Bento XVI
afirmou no texto já citado, “Um sério exame de si, que pode até mesmo
conduzir a renunciar à comunhão, nos faria [...] sentir de modo novo a
grandeza do dom da eucaristia e isso representaria ao mesmo tempo uma
forma de solidariedade com os divorciados recasados.” E por que não
pensar que isso também seja assumido pelo celebrante da eucaristia, em
relação ao qual, parece, não haver orientação a uma comunhão compulsória
em cada celebração?
2 – Proposta para a próxima assembleia sinodal a respeito dos recasados
Como já afirmado acima, as questões não pretendem eliminar o debate
quanto a esse tema. No entanto, parece importante, a partir das próprias
perguntas da questão n. 38 do questionário, se esboçar outras
possibilidades de acolhimento e comprometimento dos casais divorciados recasados
no seio da Igreja. Não se trata de apontar vias “paliativas”, como o
afirmaram alguns (de resto, a via do acesso à comunhão também é
paliativa, pois nunca resolveria totalmente as questões humanas do
divórcio) ou, muito menos, uma saída estratégica para se evitar o
confronto com essas questões. Mas trata-se de evitar que a reflexão
esteja somente à mercê da polaridade entre o acesso ou não à comunhão
eucarística. E, para tanto, se faz aqui apelo a uma via não muito
explorada durante o Sínodo – embora tenha sido proposta – e sugerida em dezembro passado pelos dois papas.
Todavia, cabe também recordar que a via da agilização e acessibilidade ao processo matrimonial, como refletida no n. 49 dos Linamenta,
merece também maior atenção, por não só ter uma adesão mais
equilibrada, mas porque, de fato, muitas situações (talvez a maioria)
poderiam ser por ela atendidas adequadamente. Quanto a esse tema, é
necessário retomar o que o Papa Bento XVI, em várias ocasiões, já afirmará a respeito da falta de fé de muitos batizados (pagãos batizados),
sobre a qual se deveria aprofundar quando se trata da recepção e da
validade do sacramento do matrimônio. Tal argumentação também reaparece
no seu texto publicado recentemente, em que o papa emérito corrige a
conclusão do seu artigo de 1972.
Voltando à via proposta recentemente pelos dois papas, a questão que a
norteia é a seguinte: como podem viver quotidianamente a vida de fé
cristã no seio da comunidade eclesial? Ou, para retomar parte da questão
n. 38, “quais sugestões para resolver formas de impedimentos indevidas
ou desnecessárias” ?
a - A orientação do magistério recente
Na Familiaris consortio, n. 84, pede-se, em primeiro lugar, que se discirna bem as situações. E se afirma que a Igreja não pode abandonar os fiéis divorciados recasados,
pois não estão separados dela. Enquanto batizados, devem participar da
vida eclesial através de várias atividades, entre elas destaque-se a
educação dos filhos na fé, também reafirmada pelo Catecismo
(cf. n. 1651). A Exortação apostólica Sacramentum caritatis, n. 27,
reforça a ideia de pertença à Igreja, e, dentre vários modos de
participação na vida eclesial, evoca também a educação dos filhos.
b – Os questionamentos na práxis pastoral
O Catecismo da Igreja Católica (CIgC), n. 1650, afirma que
os fiéis recasados estão “numa situação objetivamente contrária à lei de
Deus. Por isso [...] ficam impedidos de exercer certas
responsabilidades eclesiais.” Assim, o discernimento sobre o que o casal
em nova união estável ou um deles pode ou não realizar no seio da
comunidade, pode ou não assumir, tem ficado a critério do seu pastor,
variando desde a autorização à comunhão à proibição de se fazer uma
leitura durante a celebração eucarística. Nesse contexto, faz-se
necessário citar o texto Sulla pastorale dei divorziati risposati (1998), de autoria da Congregação da Doutrina para a Fé, publicado na coleção Documenti, commenti e studi.
O texto indica quais seriam essas responsabilidades vedadas a esses
fiéis e procura dar as razões canônico-pastorais. Assim, não podem ser
padrinhos de batismo ou crisma; assumir os “serviços litúrgicos” (Leitor
e ministro da Eucaristia) e os “serviços catequéticos” (professor de
religião, catequista de primeira comunhão ou crisma); ser testemunha de
casamento; e fazer parte do Conselho Pastoral Diocesano ou conselhos
paroquiais.
Alguns questionamentos devem ser feitos a respeito do referido texto: tratar-se-ia de documento emanado da Congregação para a Doutrina da Fé ou de comentário ou estudo, já que publicado na coleção “Documenti, commenti e studi”? Se é documento, por que razão não consta da lista dos documentos disponíveis no site da Santa Sé,
na parte reservada à Congregação? Por que não foi traduzido? Foi
aprovado em audiência com o Santo Padre? Note-se que a Exortação
apostólica Sacramentum caritatis, publicada posteriormente a
esse texto, quando aborda a questão da participação dos fiéis recasados
na vida da Igreja e na celebração eucarística (cf. supra), não faz
referência ao texto.
Há difuso desconhecimento do referido texto, porém ainda vigora em
boa parte das Igrejas particulares a proibição de que pessoas unidas em
nova união estável sejam admitidas como padrinhos e madrinhas. No
entanto, algumas têm feito exceções, aceitando de modo excepcional
aqueles que estão “engajados na comunidade eclesial”. Por outro lado,
outras pedem que seja revisto e flexibilizado a interpretação dada ao
cânon 874 § 1, 3º, a respeito do encargo de padrinho ou madrinha. O
mesmo se diga em relação a outras funções eclesiais, tais como serviços
litúrgicos, catequéticos e à participação em Conselhos Pastorais
diocesanos ou paroquiais.
No sentido de uma eventual revisão desse texto, advogam tano o Papa Francisco como o Papa Emérito Bento XVI.
Na entrevista dada pelo Papa Francisco ao Jornal Lanación, acima
citada, o papa questiona: “[Os recasados] Não estão excomungados, é
verdade. Mas não podem ser padrinhos de batismo, não podem ler a leitura
na missa, não podem dar a comunhão, não podem ensinar a catequese, não
podem ao todo umas sete coisas; tenho a lista aí. Parem! Se eu conto
isso pareceriam excomungados de fato! Então, abram as portas um pouco
mais! Por que não podem ser padrinhos? ‘Não, veja, que testemunho vão
dar ao afilhado.” O testemunho de um homem e uma mulher lhe dizem:
‘Olha, querido, eu me equivoquei, eu escorreguei neste ponto, mas creio
que o Senhor me quer, e quero seguir a Deus, o pecado não me venceu, mas
antes sigo adiante.’ Haveria maior testemunho cristão do que esse?
[...] Ou seja, temos que começar a mudar um pouco as coisas, as
orientações valorativas.”
Por sua vez, o Papa Bento XVI,
num texto publicado no final do ano passado (03/12) no site
chiesa.expressoonline, já mencionado acima, afirma: “No número 84 [da
Familiaris consortio] está escrito: ‘Juntamente com o Sínodo,
exorto calorosamente os pastores e a inteira comunidade dos fieis, a
fim de que ajudem os divorciados procurando com solícita caridade que
não se considerem separados da Igreja [...]. A Igreja ore por eles, os
encorajem, demonstre-se mãe misericordiosa e assim os sustente na fé e
na esperança.’ Com isso, à pastoral se confia uma tarefa importante, que
talvez não foi ainda transposta o suficiente na vida quotidiana da
Igreja. Alguns detalhes são indicados na própria exortação. Nela está
dito que essas pessoas, em quanto batizadas, podem participar na vida da
Igreja, e que justamente devem o fazer. São elencadas as atividades
cristãs que para eles são possíveis e necessárias. Todavia, talvez se
necessitaria sublinhar com maior clareza o que podem fazer os pastores e
os irmãos na fé para que eles possam sentir verdadeiramente o amor da
Igreja. Penso que necessitaria lhes reconhecer a possibilidade de
participação nas associações eclesiais e também de aceitar que sejam
padrinho ou madrinha, o que no momento o direito não prevê.”
As propostas que se seguem, com suas breves justificativas, vão neste sentido.
c - A função de padrinho ou de madrinha de batismo ou de crisma
Reza o cânon 874, § 1.º, item 3.º, do CIC: “Sit catholicus, confirmatus et sanctissimum Eucharistiae sacramentum iam receperit, idemque vitam ducat fidei et muneri suscipiendo congruam”. A frase denota a exigência legal de que o padrinho ou a madrinha viva de modo congruente com a fé e com o múnus assumido.
Preceitua o cânon 18 do CIC: “Leges quae poena statuunt aut liberum
iurium exercitium coarctant aut exceptionem a lege continent, strictae
subsunt interpretationi”. Trata-se deveras de um princípio válido tanto
para o direito canônico como para o direito civil. Ou seja, as leis que
coarctam o exercício de direitos devem ser interpretadas em sentido
estrito e não amplo. O próprio cânon 874 poderia ter arrolado os
“casados em nova união” entre os que não se qualificam para o exercício
da missão de padrinho ou madrinha. Mas não o fez. Decerto, o rol do
cânon é taxativo e não exemplificativo; em outras palavras, não se
poderiam propor requisitos além dos que constam do mencionado cânon.
O pároco, pastor próprio da comunidade, sob a orientação do bispo,
auxiliado pelo bom senso da comunidade paroquial, poderia aferir, no
caso concreto, se a pessoa “recasada”, ao seu modo, leva uma vida
coerente com a fé e com a eventual missão de ser padrinho ou madrinha de
batismo ou crisma.
d - Outras funções na vida pastoral e litúrgica da Igreja
A respeito das outras funções ou serviços elencados pelo texto da Congregação para a Doutrina da Fé,
há que se realizar uma avaliação diferenciada daquilo que é proposto
pelo mesmo. Quando o texto evoca os “serviços litúrgicos”, detém-se no
serviço de leitor e ministro extraordinário da Eucaristia. Por coerência
com a situação na qual os fiéis em segunda união estável se encontram,
compreende-se o impedimento ao exercício do ministério extraordinário da
Eucaristia. Todavia, não pouca dificuldade tem surgido quando o assunto
é o “serviço de leitor”. Ao que se refere o texto? Ao leitor instituído
ou a qualquer leitor ad hoc? Caberia maior clareza em relação à
possibilidade de se aceitar esses fiéis, de comprovada e reconhecida
caminhada comunitária, na vida litúrgica da Igreja. O texto da SC fala
em participação desses casais na Santa Missa. A participação na Santa Missa deve ser “consciente, ativa e frutuosa”, segundo a Instrução Redemptionis Sacramentum
(RS), n. 4. Quando uma pessoa ou um casal em nova união participa da
Santa Missa, poder-se-ia admitir sua efetiva participação, enquanto
batizados (cf. FC, n. 84), na ação litúrgica, através das
leituras, da recitação ou canto do salmo, bem como de outros atos que
estejam conforme as orientações sobre a atuação dos leigos na celebração
litúrgica, segundo os n. 43-47 da RS.
No que tange aos “serviços catequéticos” (professor de religião,
catequista de primeira comunhão ou crisma), não se poderia argumentar
que, assim como os casais em nova união estável são convidados a educar
seus filhos na fé (cf. FC, n. 84; CIgC n. 1651), não poderiam eles exercer também o papel de transmissores da fé para outras crianças, adolescentes e jovens?
Em relação ao exercício da função de testemunha de casamento, talvez
se exija maior discernimento pastoral, sendo por vezes, como diz o texto
da Congregação para a Doutrina da Fé, desaconselhada.
A participação no Conselho Pastoral Diocesano ou nos
conselhos paroquiais estaria vedada com base na interpretação do cânon
512 §13, que reza o seguinte: “Para o conselho pastoral não se escolham
senão fiéis de fé firme, de bons costumes e notáveis pela prudência”.
Cabe se perguntar se os fiéis em nova união estável, chamados a
participar da vida da Igreja (cf. FC, n. 84) ou a cooperarem na vida
comunitária (cf. SC, n. 27), não poderiam também ter uma fé firme, bons
costumes e serem notáveis pela prudência, ainda que em situação
irregular. O cânon talvez mereça uma interpretação mais flexível.
e – A caridade pastoral como critério para a orientação das situações difíceis
Há uma necessária prudência a ser adotada no que concerne a acolhida dos fiéis recasados, a
fim de que não se pretenda equacionar ligeiramente recentes rupturas,
causando graves injustiças para com os cônjuges que preferiram não se
recasar e manter sua fidelidade ao casamento rompido. A
caridade pastoral deve ser exercida para conciliar a verdade das
situações difíceis com a misericórdia em relação a todos os que sofrem
com o término de um casamento. Seguindo um antigo critério eclesial,
para os ofícios, funções e responsabilidades na vida da Igreja e da
comunidade local, evitar-se-á a escolha de alguém cuja indicação venha a
causar escândalos. O bom-senso pastoral tem aqui um lugar relevante, a
fim de se procurar incluir as pessoas em nova união estável na vida
eclesial da comunidade, tanto a nível litúrgico quanto pastoral. Por
outro lado, é necessário também haver orientações da parte da Igreja
particular, proximidade do pastor da comunidade com o seu bispo e seu
presbitério, bem como com a própria comunidade no exercício da avaliação
das situações em vista de maior acolhida e do engajamento dos fiéis em
nova união estável na vida da Igreja.
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