segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Deus faz nascer o seu sol sobre maus e bons

[domtotal]
Por Felipe Magalhães Francisco*


Novidade da pregação de Jesus reside na orientação da prática do amor para além dos bem-quistos: “Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem”.

 

Detentos fabricam jalecos para centro cirúrgico em Divinópolis. (Marcelo Sant’Anna/ Imprensa MG)

Nas redes sociais, encontramo-nos, constantemente, em meio a falsos dilemas: se o vestido é azul ou dourado; se escolhemos salvar o traficante gravemente ferido ou o policial levemente ferido. A primeira questão, inútil; a segunda, desnecessária, mas que nos revela que o lugar da ética em nossa sociedade, de maioria que se professa cristã, não é de destaque.

É absurdamente assustador que uma sociedade, na qual a maioria se reconhece como cristã, acredite que bandido bom seja o bandido morto. Esse é um cristianismo sem Jesus, que daria a Nietzsche o gostinho de um “eu tinha razão!” e que nos faz querer concordar com ele. Ao assumir, cada vez mais, a dimensão de religião, o cristianismo foi rompendo com o Evangelho de Jesus, no qual não há a instituição de uma religião, mas de um modo de vida.

Se não há Jesus – com seu modo de vida orientado para o Reino de justiça, solidariedade e fraternidade – não há, nesse cristianismo, lugar para a ética trazida pelo Mestre e que os primeiros cristãos tinham como pilar para esse jeito-de-ser-com-Jesus: o amor. A pregação do amor, por parte de Jesus, não é novidade dentro do judaísmo, do qual fazia parte. A grande novidade reside no fato de Jesus orientar esse amor para além dos bem-quistos: esse é um amor que precisa alcançar, sobretudo, aos inimigos. “Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem” (Mt 5,43).

A discussão levantada no programa da Fátima Bernardes, sobre quem os convidados escolheriam salvar, é desnecessária porque se torna um desserviço para a compreensão profunda da questão ética que subjaz esse assunto. Na situação de uma pessoa correndo o risco de morrer, independentemente de sua moral e ficha criminal, ela deve ser primeiro socorrida. Nas redes sociais, o que se seguiu foi um show de justiçamento, que revelou não somente a onda estúpida na qual a sociedade surfa, mas também o despreparo humano de uma população que se diz cristã.

A constatação de Jesus, de que Deus faz nascer seu sol sobre maus e bons, é consequência da mensagem fundamental da pregação do amor aos inimigos, como podemos ver na sequência do texto de Mateus: “Assim [se amardes vossos inimigos e orardes pelos que vos perseguem] vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus; pois ele faz nascer seu sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (5,45).

Para os seguidores e seguidoras de Jesus, ao contrário do que faz uma religião desvinculada do Evangelho, não se trata de pura escolha salvar o mocinho e abandonar o bandido. Significa testemunhar aquilo que os cristãos e cristãs insistem em rezar, infelizmente sem muitos desdobramentos existenciais e vivenciais: “perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. E mais: significa, ainda, não abrir mão do imperativo ético fundamental: a vida humana tem fim em si mesma e não pode ser usada para que se alcance outro fim.

Assumir-se cristão e cristã é se colocar, cotidianamente, diante do exercício responsável de liberdade, lugar da vivência ética, que não dá espaço para atitudes de justiçamento: “Cito hoje o céu e a terra como testemunhas contra vós, de que vos propus a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida [...]” (Dt 30,19).

Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras. E-mail para contato: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com. 

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