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Por Felipe Magalhães Francisco*
Ver, na Escritura, é mais que uma atividade ocular. Trata-se de contemplar, em profundidade.
Faz parte do processo discipular conhecer a intimidade do Mestre. (Reprodução/ Pixabay) |
Tradicionalmente, o sentido mais valorizado por
nós é o da visão. Todos já ouvimos que os olhos são a janela da alma; há
quem diga, ainda, que são o espelho. Costuma-se pensar que apreendemos o
mundo pelos olhos. Quem nunca se incomodou com o fato de conversar com
alguém que tem dificuldade em olhar nos olhos? Geralmente, não olhar nos
olhos de alguém para conversar contribui para a desconfiança e para a
dúvida a respeito da sinceridade do que se diz. Não há dúvidas de que a
visão é um dos sentidos mais importantes, não só fisicamente, mas,
também, simbolicamente.
A fé cristã, no entanto, não supervaloriza
a visão. Pelo menos não biblicamente. Não significa, porém, que não
perceba sua importância. Se analisarmos, por exemplo, as narrativas
relativas às aparições de Jesus Ressuscitado, perceberemos que os
evangelhos, sobretudo o de João, buscam levar os leitores a perceberem o
que está no mais profundo do significado de dizer que Jesus ressuscitou
e que apareceu aos discípulos. Não se trata de ver o Ressuscitado, mas
de fazer uma experiência – sem dúvidas, mística – com ele. São os
emblemáticos casos de Tomé, no Evangelho de João, e dos Discípulos de
Emaús, no Evangelho de Lucas: para o primeiro, não basta nem apenas a
visão, ele exige o toque; para os outros dois, quando os olhos se abrem,
eles já não veem mais.
No início do Evangelho de João, no
entanto, duas cenas chamam a atenção. Ambas ligadas ao ver. A primeira
cena (cf. Jo 1,35-39) narra João Batista que, acompanhado de dois de
seus discípulos, aponta para Jesus, indicando-o como o Cordeiro de Deus.
Por causa do que dissera João, os dois discípulos passaram a seguir
Jesus. O Cristo, ao perceber a aproximação dos dois discípulos, lança
uma interpelação, a respeito do que queriam. Uma pergunta surpreendente e
inesperada parte dos dois discípulos: “Mestre, onde moras?”. Buscar
saber onde mora o Mestre Jesus significa querer conhecer sua intimidade,
descobrir quem ele realmente era. Em casa, geralmente somos quem somos.
A
resposta de Jesus não foi a de quem passou um endereço; ou de quem deu a
indicação, com referências, de onde residia. A resposta dele foi um
convite: “Vinde e vede!”. Esse é um convite estendido a cada discípulo e
discípula, de todos os tempos. Ele próprio nos abre à possibilidade de
adentrar sua intimidade, de compartilhar de sua vida, que continua dando
sentido a tanta gente, ainda hoje. Ir ver onde mora Jesus é agradável e
suave tarefa pressuposta a todo discípulo e discípula. Faz parte do
processo discipular conhecer a intimidade do Mestre. A
narrativa continua dizendo que os discípulos foram com Jesus, viram onde
morava e que permaneceram com ele. Interessante é o detalhe que João
nos traz: era por volta das quatro horas da tarde! A nós, que nos
pretendemos discípulos e discípulas de hoje, quando se deu ou se darão
as nossas “quatro horas”?
A segunda cena (cf. Jo 1,43-51) também
diz respeito à dinâmica de seguimento de Jesus. Nela, é-nos narrado que,
no dia seguinte ao episódio com os dois discípulos de João, Jesus
decidiu partir para a Galileia. Lá, ele encontrou Filipe, a quem tão
logo lançou o convite: “Segue-me!”. Filipe, por sua vez, ao encontrar
Natanael, contou-lhe ter encontrado a Jesus de Nazaré, aquele a respeito
do qual havia escrito tanto Moisés quanto os profetas. Natanael,
duvidoso acerca do lugar de onde vinha Jesus, logo pergunta: “De Nazaré
pode sair algo de bom?”. A ironia joanina é perceptível: na cena
anterior, os dois discípulos foram à casa de Jesus e com ele
permaneceram. Aqui, Natanael lança dúvidas. Filipe, então, lança o
convite-desafio: “Vem e vê!”. Tal como os dois primeiros discípulos,
Natanael também vai, em busca de ver. O encontro com Jesus é
significativo. O Mestre já havia reparado em Natanel: “[...] eu te vi”.
Ver,
aqui, tal como podemos perceber, é mais que uma atividade ocular.
Trata-se de contemplar, em profundidade, a vida de Jesus, partilhando
com ele da sua vida inteiramente doada. É o olhar que torna possível o
apaixonamento. Apaixonar-se por Jesus e por sua causa, deixando que o
despertar nascido do encantamento nutra um profundo e autêntico amor,
capaz de fazer com que a ele fiemos nossa vida, é convite sempre aberto –
e necessário – a cada pessoa, sobretudo àquelas que se reconhecem como
cristãs. Ele nos viu por primeiro e isso nos abre a uma grande
possibilidade: deixarmo-nos por ele ser cativados, adentrando a
profundidade de sua intimidade. Que o seu convite ecoe em nós: “Vinde e
vede!”.
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de
Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux,
2015). Escreve às segundas-feiras. E-mail:
felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
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