terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Polêmico verbo “casar”: afinal, o Papa Francisco casou ou não casou?

[aleteia]
Por Francisco Vêneto

De alguns pontos de vista, Francisco não casou os comissários chilenos; de outros, casou, sim. E então?



Em diversos veículos católicos de informação, levantou-se em dias recentes uma polêmica em torno ao uso do verbo “casar” nos relatos sobre o matrimônio de Carlos Ciuffardi e Paula Podest, realizado em pleno voo, no Chile, sob a assistência de ninguém menos que o Papa Francisco. Se você não sabe de que nem de quem estamos falando, confira esta notícia antes de prosseguir.
Pois bem. Algumas manchetes estamparam que o Papa casou dois tripulantes do avião no Chile, redação esta que levou os defensores de certo uso estrito do verbo “casar” a alegarem que, a rigor, o Papa Francisco não casou ninguém. Quem se casou foram Carlos e Paula.
Afinal, o Papa os casou ou não casou?

O catecismo

De um ponto de vista bastante específico, que é o da doutrina católica, a zelosa alegação de que o Papa não os casou pretende recordar que o ministro de qualquer um dos sete sacramentos da Igreja é a pessoa que faz com que o sacramento se realize. No caso da Eucaristia, por exemplo, o ministro é o sacerdote. No caso da ordem sacerdotal, o ministro é o bispo. E no caso do matrimônio, os ministros são os próprios esposos. O Catecismo da Igreja Católica nos explica:
1623 – Segundo a tradição latina, são os esposos quem, como ministros da graça de Cristo, mutuamente se conferem o sacramento do matrimônio, ao exprimirem, perante a Igreja, o seu consentimento.
É isto mesmo: no caso do matrimônio, o diácono, o padre, o bispo ou mesmo o Papa é apenas uma testemunha, por parte da Igreja, do sacramento conferido pelos próprios noivos um ao outro. O Catecismo prossegue:
1630 – O sacerdote (ou o diácono) que assiste à celebração do matrimônio recebe o consentimento dos esposos em nome da Igreja e dá a bênção da Igreja. A presença do ministro da Igreja (bem como das testemunhas) exprime visivelmente que o matrimônio é uma realidade eclesial.
É correto e oportuno, portanto, precisar que o Papa não “casou” ninguém, desde que fique bem claro que o sentido deste verbo, neste caso específico, é o de ministrar o sacramento do matrimônio: de fato, o Papa foi apenas testemunha; e, também de fato, quem se casou foram os noivos.
Ainda assim, afirmações como O padre Sicrano casou a Fulana e o Beltrano não estão erradas.
É que o verbo “casar” não tem somente um significado.

O dicionário

Para ficarmos só nos dicionários da língua portuguesa que podem ser consultados gratuitamente via internet e que são reconhecidos como fontes confiáveis, o Aulete e o Priberam mencionam, respectivamente, sete e quatro significados do verbo “casar” – sendo que ambos os dicionários citam o de unir(se) em matrimônio como um dos significados primários. O Aulete exemplifica:
Aquele padre já casou muita gente. Ela vai (se) casar com Bruno. Nós nos casamos em março. Ele ainda não casou. Casei-me há dois meses.
Ou seja, a frase O padre Sicrano casou a Fulana e o Beltrano é um exemplo de português perfeitamente correto.
Se a maioria dos católicos não compreende que o padre Sicrano não foi o ministro do sacramento, mesmo tendo sido ele quem casou o noivo e a noiva, aí já entramos em outra discussão – e a culpa dessa falta de entendimento não é do verbo casar, mas da má catequese oferecida aos católicos em grande parte das paróquias.

A lógica

Já que enveredamos pelo mundo fascinante da linguagem humana e dos seus matizes, não custa aproveitar para recordar a importância de se distinguir entre o termo e os conceitos que um termo pode indicar. Esta distinção é um dos pilares da lógica desde os tempos de Aristóteles (e compreendê-la eliminaria uma quantidade incalculável de bate-bocas desnecessários).
Vamos usar um exemplo simpático: no Brasil, o termo “gato” se refere primariamente a uma espécie de felino, que é o macho da gata e o pai dos gatinhos; mas também pode se referir a uma instalação clandestina de energia elétrica ou de TV por assinatura, além de ser ainda uma gíria que significa “homem bonito”. Ou seja, um mesmo termo, “gato”, pode indicar (pelo menos) três conceitos que nada têm a ver um com o outro: é o contexto o que deixará claro qual é o sentido que se pretende dar ao termo em cada caso – e sem que isto cause maiores dramas.
No universo católico, o verbo “consagrar” é um exemplo clássico de termo que pode apontar para diversos conceitos diferentes, ainda que relacionados por analogia. O seu significado original é o de “tornar sagrado”. No entanto, esse mesmo termo também costuma ser usado no sentido de “dedicar”, “oferecer”, “devotar”. Se alguém diz que consagrou a sua família a Nossa Senhora, evidentemente não está querendo dizer que tornou sagrada a sua família do mesmo jeito que um sacerdote consagra um altar, e, muito menos, do mesmo jeito que Jesus consagrou a Eucaristia.

O bom senso

No tocante às já “consagradas” conotações populares do verbo “casar”, a legítima preocupação católica não deveria ser a de impor restrições improcedentes (e até ingênuas) à extensão e ao significado do termo, mas sim a de esclarecer os conceitos doutrinais envolvidos nele.
Quando se entende quem são os ministros deste sacramento, não há nenhum grave problema com o emprego do verbo “casar” na conotação de ser o sacerdote que preside a cerimônia religiosa na qual um homem e uma mulher ministram a si próprios o sacramento do matrimônio. Aliás, além do português, esta conotação é tão comum no espanhol que o próprio Papa Francisco a usou com este mesmo sentido, sem que nenhum teólogo sério se prontificasse a condená-lo por heresia.
Bom senso, por gentileza.

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