sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

A GRAÇA DO ESPÍRITO SANTO... Continuação


-Um calor extraordinário.


-Como, um calor? Não estamos na floresta, em plena neve? A neve está sob os nossos pés, estamos cobertos dela e ela continua caindo... De que calor se trata?


-Um calor semelhante ao de um banho de vapor.


-E o cheiro é como no banho?


-Oh, não! Nada sobre a terra se pode comparar a esse perfume. No tempo em que a minha mãe vivia, ainda gostava de dançar e quando eu ia a um baile, ela me aspergia perfumes que comprava nas melhores lojas de Kasan e pagava muito caro. O seu odor não é comparável a estes aromas.


O padre Serafim sorriu.


-Eu sei, meu amigo, tanto quanto vós, e é de propósito que vos interrogo. É bem verdade, nenhum perfume terreno pode ser comparado ao bom odor que respiramos neste momento, o bom odor do Espírito Santo. O que pode, sobre a terra, ser-lhe comparado? Dissestes, ainda há pouco, que fazia calor, como no banho. Mas olhai, a neve que nos cobre, a vós e a mim, não se derrete, assim como a que está aos nossos pés. O calor não está no ar, mas no nosso interior. É este calor que o Espírito Santo nos faz pedir na oração: "Que teu Espírito Santo nos aqueça". Este calor permitia aos eremitas, homens e mulheres, não temerem o frio do inverno, envolvidos, como estavam, como que num manto de peles, numa veste tecida pelo Espírito Santo.

É assim que, na realidade, deveria ser, habitando a graça divina no mais profundo de nós, em nosso coração. O Senhor disse: "O Reino de Deus está dentro de vós" (Luc.17,21). Por Reino de Deus ele entende a graça do Espírito Santo. Este Reino de Deus está em nós, agora. O Espírito Santo nos ilumina e nos aquece. Enche o ar de perfumes variados, alegra os nossos sentidos, sacia o nosso coração com alegria indizível. O nosso estado atual é semelhante àquele do qual fala o apóstolo: "Porquanto o Reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas é justiça, paz e alegria no Espírito Santo" (Rom.14,17). A nossa fé não se baseia em palavras de sabedoria terrena, mas na manifestação do poderio do Espírito. Trata-se do estado em que estamos atualmente e que o Senhor tinha em vista quando dizia: "Em verdade vos digo que estão aqui presentes alguns que não provarão a morte até que vejam o Reino de Deus chegando com poder" (Marc.9,1).                                            


Eis aí, amigo de Deus, a alegria incomparável que o Senhor se dignou conceder-nos. Eis o que é estar "na plenitude do Espírito Santo". É isto o que entende São Macário, o Egípcio, quando escreve: "Eu mesmo estive na plenitude do Espírito Santo". Humildes quanto somos, o Senhor nos encheu da plenitude de seu Espírito. Parece-me que, a partir deste momento, não tereis de me interrogar mais sobre a maneira como se manifesta, no homem, a presença da graça do Espírito Santo.


Esta manifestação permanecerá para sempre em vossa memória.


-Não sei, padre, se Deus me tornará digno de me lembrar dela sempre com tanta nitidez como agora.


Difusão da mensagem.


-E eu, respondeu o staretz, julgo que, pelo contrário, Deus vos ajudará a guardar todas estas coisas para sempre, em vossa memória. De outro modo ele não teria sido tão rapidamente tocado pela humilde oração do miserável Serafim e não teria atendido tão depressa o seu desejo. Além do mais, não é somente a vós que é dado ver a manifestação desta graça mas, por vosso intermédio, ao mundo inteiro. Vós mesmo assegurai-vos, sereis útil a outros.


Monge e leigo.


Quanto a nossos estados diferentes, de monge e leigo, não vos preocupeis. Deus procura acima de tudo um coração cheio de fé nele e em seu Filho único, em resposta à qual envia do alto a graça do Espírito Santo. O Senhor procura um coração repleto de amor por Ele e pelo próximo; aí está um trono sobre o qual Ele gosta de sentar-se e onde ele aparece na plenitude de sua glória. "Meu filho, dá-me o teu coração, e o resto eu te darei por acréscimo" (Prov.23,26). O coração do homem é capaz de conter o Reino dos Céus. "Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça", diz o Senhor a seus discípulos, "e todas estas coisas vos serão acrescentadas, pois Deus, vosso Pai, sabe do que precisais" (Mat.6,33).


Legitimidade dos bens terrenos.


O Senhor não nos proíbe o gozo dos bens terrenos, e diz ele próprio que, dada a nossa situação aqui na terra, deles precisamos para dar tranqüilidade às nossas existências e tornar mais cômodo e fácil o caminho para a nossa pátria celeste. E o apóstolo Pedro acha que nada há melhor no mundo do que a piedade unida ao contentamento. A Santa Igreja pede que isso seja dado. Apesar das penas, as desgraças, e as necessidades serem inseparáveis da nossa vida na terra, o Senhor jamais quiz que os cuidados e as misérias constituíssem toda a trama dela. E, por isso, pela boca do apóstolo nos manda carregar os fardos uns dos outros, a fim de obedecer a Cristo que pessoalmente nos deu o preceito de nos amarmos mutuamente. Reconfortados por esse amor, a caminhada dolorosa pela via estreita que leva à nossa pátria celeste nos será facilitada. Não desceu o Senhor do céu não para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela redenção de muitos? (Mat.20,28; Marc.10,45).


Atuai do mesmo modo, amigo de Deus, e, consciente da graça da qual fostes visivelmente objeto, comunicai-a a todo homem desejoso da sua salvação.


Atividade missionária.


"A colheita é grande", diz o Senhor, "mas poucos os operários" (Mat.9,37-38; Luc. 10,2). Tendo recebido os dons da graça, somos chamados a trabalhar colhendo as espigas da salvação do nosso próximo, para os recolhermos no celeiro, em grande número, no Reino de Deus, a fim de que produzam seus frutos, uns trinta, outros sessenta, e outros cem. Estejamos atentos para não sermos condenados com o servo preguiçoso que enterrou o dinheiro a ele confiado, mas tratemos de imitar os servos fiéis que devolveram ao Mestre um, em vez de dois talentos, quatro, e o outro, em vez de cinco talentos, dez. Quanto à misericórdia divina, não se pode duvidar dela: vede vós mesmo como as palavras de Deus, ditas por um profeta, se realizaram por nós. "Sou, por acaso, Deus apenas de perto" (Jer.23,23).


8) Primeiras considerações sobre o diálogo com Motovilov.


A beleza deste diálogo ocorrido há tanto tempo toca a sensibilidade daqueles que o lêem. Não devemos, porém, perder a oportunidade de nos lembrar que Serafim somente chegou a esta plenitude do Espírito Santo porque ao ter ouvido o chamado de Deus a Ele se entregou de corpo e alma; dedicou-se, esforçou-se, colaborou intensamente com a graça. Estudou as Sagradas Escrituras, assimilou o seu conteúdo, praticou as virtudes, viveu da oração, pôs toda a sua esperança em Deus a quem amou entranhadamente. O Senhor recompensou a sua fé enviando-lhe do alto o Espírito Santo, com o qual Serafim passou a fazer todas estas coisas com um coração mais puro e mais intensamente. Mas se ele tivesse esperado passivamente que Deus o escolhesse entre todos os homens para enviar-lhe o Espírito Santo hoje ele não estaria no Reino de Deus. Que faça a experiência quem achar o contrário. Por isso é que Jesus disse: "Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque muitos tentarão entrar e não conseguirão". É como se dissesse: é mais estreito do que pensais. Mas ele nos disse isso porque nos ama, porque nos quer fazer acordar e porque deseja a nossa felicidade. Que lição para nós! Que fazemos do precioso tempo da vida que Deus nos concede para que possamos aprender a caminhar na sua luz? "Nós procedemos como loucos", diz o profeta no Velho Testamento; "mas os olhos do Senhor contemplam toda a terra e inspiram força aos que confiam nEle com um coração perfeito" (2 Cron. 16,9). Se as pessoas procurassem a graça do Espírito Santo com a mesma ganância, com o mesmo esforço, com as mesmas preocupações, com as mesmas inclinações, com a mesma vigilância, com a mesma solicitude com que procuram sexo e bem estar, como o mundo não seria diferente, como as pessoas não seriam diferentes, como não seriam mais felizes, como não floresceria na terra a vida do céu!  É precisamente isto o que significam aquelas palavras das Sagradas Escrituras: "Os que são da carne, gostam das coisas da carne; os que são do espírito, gostam das coisas do espírito" (Rom. 8,5). "O que nasceu da carne é carne, o que nasceu do espírito é espírito" (João 3,6). "O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita" (João 6,64). E também: "Aquele que não nascer de novo, não pode entrar no Reino de Deus" (João 3,3). É preciso refletir muito sobre estas palavras e tomar uma decisão séria. Jesus não se cansa de nos advertir de que não se pode servir a dois senhores (Mat 6,24). "Onde estiver o nosso tesouro, ali também estará o nosso coração" (Mat 6,21).


9) A essência do Evangelho.


Introdução.


No diálogo com Motovilov, primeiro padre Serafim nos disse que a finalidade da vida cristã é a obtenção do Espírito Santo. Em seguida, procurou mostrar a Motovilov o que é o dom do Espírito Santo. Na Summa Theologiae, escrita quase seiscentos anos antes deste diálogo, Santo Tomás de Aquino nos diz que o Espírito Santo é a própria essência do Evangelho. A seguinte passagem é tirada da questão número 106 da primeira parte da segunda parte da Summa Theologiae de Santo Tomás.


Texto da Summa Theologiae de S.Tomás de Aquino,

questão 106 da primeira parte da segunda parte.


Qual é a essência da Evangelho, pergunta Santo Tomás, ou, o que é o mesmo, "em que consiste a Nova Lei trazida por Cristo?


Dizem os filósofos que cada coisa parece ser o que nela há de principal.


Ora, o que é principalíssimo na Lei do Novo Testamento, e que é aquilo em que consiste toda a sua força, é a graça do Espírito Santo, que nos é dada pela fé em Cristo.


Portanto, o Evangelho, ou a Nova Lei, consiste principalmente na própria graça do Espírito Santo, que é dada por Cristo aos fiéis.


Secundariamente, porém, o Evangelho consiste também nos mandamentos escritos, que servem para dispor o homem para a graça do Espírito Santo. Estes mandamentos são todas aquelas coisas que é preciso saber para que se manifeste a divindade e a humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo e são também todas aquelas coisas que nos ensinam a desprezar o mundo, pois é através destas coisas que o homem se torna capaz da graça do Espírito Santo. De fato, no Evangelho de S. João as Sagradas Escrituras dizem que "o mundo não pode receber o Espírito Santo"; quando elas dizem "o mundo", estão se referindo às pessoas que amam o mundo".


10) Segundo comentário ao diálogo com Motovilov.


Para se entender mais corretamente os ensinamentos contidos nas palavras de S. Serafim e nas questões da Summa Theologiae, devemos observar que no diálogo com Motovilov o padre Serafim não explicou, nem procurou fazer com que seu amigo experimentasse os principais efeitos que o Espírito Santo produz na alma daqueles que caminham de coração aberto em busca do Reino de Deus. Os efeitos principais que o Espírito Santo produz na alma daqueles que se aproximam de Deus pelo trabalho de santificação que nos é descrito nas Sagradas Escrituras são mais profundos do que os apontados por S. Serafim e são difíceis de serem compreendidos por aqueles que não passaram por eles. Este trabalho de santificação é, ademais, normalmente muito longo e exige, além do auxílio da graça divina, sem o qual se torna impossível, muita renúncia e muitos anos de perseverança. Por isso, o que padre Serafim mostrou ao seu amigo foram alguns efeitos secundários da graça do Espírito Santo, apenas para que ele, e para que nós junto com ele, tivéssemos um ponto de referência para poder nos orientar melhor na condução da vida cristã. A luz que brotava dos olhos do padre Serafim, a paz inexplicável que enchia o coração dos amigos, a alegria indescritível que Motovilov diz estar sentindo, não são os efeitos principais do Espírito Santo na alma humana quando esta procura se aproximar de Deus através de Cristo. Os principais efeitos do Espírito Santo no processo de santificação do homem se manifestam gradativamente e são os seguintes.


Primeiro, o temor de Deus e a fuga do pecado.


Segundo, uma prontidão cada vez maior para buscar as coisas do alto e não pensar nas coisas da terra, bem de acordo com o que está escrito na Epístola aos Romanos: "Os que são segundo a carne, gostam das coisas que são da carne; mas os que são segundo o Espírito, gostam das coisas que são do espírito" (Rom. 8,5).


Terceiro, uma vida em que a virtude da fé é sempre mais firme, isto é, em que a certeza da fé é sempre mais profunda, e sempre mais constante, isto é, em que a vivência da fé é sempre mais frequente.


Quarto, uma clareza cada vez maior no conhecimento de Deus e no entendimento das verdades da fé, tanto quanto é possível ao homem.


Quinto, e o principal de todos, um amor para com Deus sempre crescente. Depois que os efeitos anteriores se manifestaram e amadureceram suficientemente, este amor começa a aumentar de um modo que as próprias pessoas que amam assim a Deus sequer supunham que seria possível à natureza humana a vivência de um amor tão grande.


Finalmente, em sexto lugar, pelo efeito deste amor tão grande que é infundido na alma humana, quando este se torna de uma ordem de magnitude como o que havia na alma de S. Serafim, -e um amor assim não pôde ter sido vivido por Motovilov naqueles breves momentos em que durou o diálogo- , este mesmo amor leva aquele conhecimento de Deus e aquele entendimento das verdades da fé que havia na alma para um plano superior de vivência. Este plano superior de vivência não é a visão de Deus, que talvez além de Jesus mais ninguém o teve na terra, mas é um conhecimento de Deus da mesma natureza que aquele que nos é dado pela fé, porém situado num plano bem mais alto. Trata-se daquela verdade que Jesus disse que seria conhecida por aqueles que seguissem os seus mandamentos, e que é a forma de conhecimento mais alta que um ser humano pode alcançar na terra se ajudado a tanto por Deus.


De onde que se deduz que os principais efeitos do Espírito Santo na alma que se santifica na busca de Deus são um amor extraordinariamente elevado, muito maior do que o comum das pessoas concebem que possa existir, e o conhecimento da verdade. Estes dois efeitos não foram manifestados a Motovilov no diálogo com padre Serafim porque se isso tivesse acontecido, Motovilov teria alcançado em questão de momentos aquilo que ordinariamente a graça só concede aos homens depois de muitos anos de perseverança na vida das virtudes, as quais são também efeitos dela. Mas Deus concedeu-lhe vivenciar aqueles efeitos secundários do Espírito Santo para que, tendo estes por referência, pudesse compreender quão grandes coisas Deus prepara para aqueles que o amam, às quais todos nós somos convidados por meio do Evangelho de Jesus.


Muito tempo antes de Jesus, Isaías havia tratado deste assunto em uma célebre profecia de que vamos tratar a seguir.


11) Os dons do Espírito Santo.


Introdução.


Seiscentos anos antes de Cristo, Isaías fêz uma profecia a respeito de Jesus. Esta profecia nos foi conservada no décimo primeiro capítulo de seu livro, nos versos 1 e 2.


Texto de Isaías 11,1-2.
"Sairá um ramo do tronco de Jessé,

 e um rebento brotará de sua raiz.


 Repousará sobre ele

 o espírito do Senhor,


espírito de sabedoria

e entendimento,


espírito de conselho

e fortaleza,


espírito de ciência

e de piedade,


e sobre ele estará o espírito

de temor do Senhor".


12) Comentário à profecia de Isaías.


Na profecia com que se inicia o capítulo 11 de Isaías, Jessé é o pai de Davi, de cuja descendência nasceu Jesus. O ramo que sairá do tronco de Jessé de que fala o profeta Isaías, é, portanto, Nosso Senhor Jesus Cristo.


Esta profecia afirma que Jesus Cristo seria repleto dos dons do Espírito Santo, e, ademais, enumera sete dons do Espírito Santo, aos quais chama de sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor do Senhor.


Apesar desta profecia se referir em primeiro lugar a Cristo, ela se refere também a nós, porque foi o próprio Cristo que disse, quando orava por nós ao Pai: "Eu dei-lhes a glória que tu me deste" (João 17,22). Além disso, em conformidade com esta oração de Cristo, as Sagradas Escrituras prometem a todos aqueles que crerem no Cristo que "participarão de sua plenitude" (João 1,16). Portanto, estes sete dons do Espírito Santo são também qualidades com que a graça divina adorna a alma dos fiéis, através das quais eles podem ser conduzidos com mais docilidade pelo Espírito Santo. Eles correspondem a sete modos pelos quais o Espírito Santo costuma conduzir aqueles que vivem da fé e do amor, e são enumerados por Isaías segundo uma ordem decrescente, o mais elevado deles sendo aquele que está no início da lista, que é o dom de sabedoria.


Todos os homens que vivem em estado de graça possuem os sete dons do Espírito Santo, que são infundidos na alma quando nos convertemos a Deus pela fé e pelo amor. Á medida em que crescemos na virtude, todos os sete dons crescem juntos, cada um, porém, se manifestando com maior predominância na ordem inversa à exposta pelo profeta Isaías, como se existissem sete dias ou sete etapas no desenvolvimento da vida cristã, em cada uma destas etapas se manifestando com mais evidência este ou aquele dentre os sete dons do Espírito Santo.


Assim, no início da vida cristã primeiro se manifesta mais acentuadamente o dom de temor, embora todos os sete estejam presentes. Á medida em que progredimos na vida da graça, passa a manifestar-se com maior predominância o dom de piedade; com isto, porém, todos os outros dons crescem paralelamente, e o dom de temor, que já havia se manifestado no dia anterior, passa, quando surge o dia do dom da piedade, para um plano superior de vivência. Já não é mais o temor como aquele com que iniciamos a vida cristã; é um temor condizente com uma vida em que se manifesta mais marcadamente o dom de piedade. Em seguida, manifesta-se o dom de ciência, elevando, com ele, os dons de temor e de piedade a um plano ainda superior de vivência. E assim sucessivamente, até chegar o dia do dom da sabedoria, que é o mais alto de todos os dons do Espírito Santo.


Pelo dom de temor, o primeiro dos dons do Espírito Santo, nos é infundido um respeito reverencial por Deus, pelas coisas sagradas e pelos homens, devido ao fato de que a existência e a vida deles, quer eles o admitam ou não, está relacionada com Deus. Nossa consciência começa a tornar-se mais delicada, o pecado a aflige mais do que ao comum dos homens que vivem afastados da graça e temos medo ou até pavor de suas conseqüências espirituais. Compreendemos, dependendo da intensidade com que o Espírito Santo nos ilumina, nossa indigência espiritual e, quanto mais a compreendemos, esta compreensão nos move a um interesse maior pelas coisas de Deus. No início da vida cristã este temor possui um caráter que se chama de servil; à medida em, que vão, porém, se manifestando os demais dons do Espírito Santo, este temor inicial não desaparece, mas vai se tornando cada vez mais acentuadamente o que se chama de temor filial.


O dom de piedade, quando passa a se manifestar com maior predominância, faz com que o temor de Deus se torne mais maduro. Como o nome o diz, nos tornamos mais piedosos, tanto para com Deus como para com os homens. As pessoas se tornam mais mansas e compreensivas, perdoam com mais facilidade, cumprem seus deveres religiosos mais por uma conaturalidade para com eles do que obrigados pelo medo do pecado.


Pelo dom de ciência se inicia uma compreensão mais profunda de como os mandamentos de Deus não são preceitos arbitrários dados ao acaso por um Deus que até teria direito de proceder assim se o quisesse, mas que, em vez disso, os ordenou tendo em vista com eles o nosso bem, por conhecer todas as coisas muito melhor do que nós o podemos fazer. Percebemos cada vez mais que os seus mandamentos não são uma simples imposição de autoridade, mas são o caminho para uma liberdade com que o comum das pessoas não consegue atinar. Ainda que não o expressemos com palavras, passamos a nos comportar como se estivéssemos percebendo por nós mesmos que existe uma ciência do uso das criaturas por parte do homem, e que o homem surgiu sobre a terra como se ela tivesse sido preparada propositalmente para que, quando o homem surgisse, ele usasse desta ciência para, através das criaturas, elevar-se a alguma coisa muito alta, e não para fazer delas aquilo que o seu capricho bem entendesse. A vida daqueles que vivem inteiramente alheios a este conhecimento nos parece tão intolerável que nos causa repugnância e, se antes de nos termos convertido a Deus tínhamos vivido desta maneira, isto nos causa, mais do que simples remorso, verdadeira repulsa. "Meu coração se espanta e minha alma se aterroriza", dizia Santo Antão em uma de suas cartas, "pois nós mergulhamos no prazer como gente embriagada de vinho, porque nos deixamos distrair por nossos desejos, deixamos reinar em nós a vontade própria e recusamos elevar nossos olhos para o céu buscando a glória celeste; incapazes de exercermos nossa inteligência segundo o estado da criação original, inteiramente privados de razão, nos sujeitamos à criatura em vez de servir ao Criador". É impossível alguém enxergar isto tão claramente se o Espírito Santo não lhe tiver concedido o dom de ciência. Se pelo dom de piedade o temor de Deus se tinha tornado mais delicado, o dom de ciência parece nos mostrar a existência de um fundamento muito claro tanto para a piedade como para o temor.


Pelo dom de fortaleza a existência de algo mais elevado preparado por Deus para ser buscado pelos homens se nos torna tão manifesta que passamos a partir em sua procura com tanto empenho que isto se evidencia diante dos homens como uma determinação tão profunda e inquebrantável a que aparentemente nada pode corromper. É aqui que os homens começam a aspirar com seriedade à santidade. A fortaleza imprime uma marca inconfundível tanto no temor, como na piedade e na ciência.


A prática abundante das obras de misericórdia costuma estar associada com a vida das pessoas que se propõem à busca da santidade com a determinação do dom da fortaleza. Isto ocorre porque elas já não são mais tão guiadas em suas decisões pelo egoísmo e pelos impulsos das paixões; com isso seu entendimento se abre para uma percepção mais aguda dos problemas graves que afligem o próximo do que o das as pessoas que ainda estão passionalmente envolvidas com seus problemas pessoais e que não têm tempo nem disposição para os perceber. Ocorre, porém, que sempre o sofrimento de outros é objetivamente muito maior, mais grave, mais profundo do que os nossos problemas pessoais, e, ademais, afeta um número de pessoas muito maior do que aqueles a quem podemos efetivamente ajudar. Isto faz com que o envolvimento com o sofrimento humano, e de modo especial neste caso em que ele ocorre não por causa de alguma circunstancialidade ou algum problema pessoal, mas por causa de uma clara percepção da gravidade e da extensão deste sofrimento em si mesmo, exige por natureza um aperfeiçoamento daquela sabedoria prática que é a virtude a que denominamos de prudência. Segundo diz Ricardo de São Vítor no Benjamin Minor, a prudência é, na ordem, a última das virtudes que se aperfeiçoa no homem antes que nele se manifestem as virtudes contemplativas. Á prudência está associada a capacidade do conselho dado com sabedoria. O dom de conselho é, assim, o modo externo de como se manifesta diante dos homens aquela conaturalidade para com a prática da misericórdia daqueles que estão se aproximando de Deus.


A santidade eminente que as Sagradas Escrituras nos relatam ao narrarem as vidas dos patriarcas e dos profetas do Velho Testamento e as dos apóstolos e mártires do Novo principia propriamente pelo dom de entendimento e se torna madura pelo dom de sabedoria. O dom de entendimento produz uma tal pureza de alma daqueles que são assim conduzidos pelo Espírito Santo que eles passam a compreender com impressionante clareza o sentido mais profundo das Sagradas Escrituras e das coisas divinas. "O nome entendimento", diz Santo Tomás de Aquino, "implica um conhecimento íntimo; significa ler dentro; é aquele conhecimento da inteligência que penetra até à essência da coisa". Pelo dom de entendimento compreendemos "de um modo límpido e claro", diz ainda Santo Tomás de Aquino, o sentido das coisas que são ensinadas por Deus e que parecem obscuras ou até mesmo incompreensíveis para a maioria dos homens, muitas vezes inclusive para aqueles que passaram a vida inteira estudando, mas sem buscar verdadeiramente a Deus. Mais ainda, sua beleza se nos manifesta com tal evidência que passamos a contemplá-las habitualmente em nossa alma e com prazer sempre crescente. Os homens que são movidos pelo dom de entendimento são pessoas que vivem habitualmente da fé, e a fé neles é tão intensa que já é como uma posse antecipada da substância das coisas que eles esperam no céu (Heb. 11,1). É a estas pessoas que Jesus se referia quando dizia: "Bem aventurados os puros de coração, porque verão a Deus" (Mat.5,8). Mais ainda, aqueles que são movidos pelo dom de entendimento têm uma facilidade como que conatural para explicar aos outros o significado das coisas divinas; se isto ocorre com pessoas que têm familiaridade com a terminologia e o conhecimento teológico, surgem daí aquelas obras primas da Teologia como a Summa Theologiae de Santo Tomás de Aquino, o Tratado da Santíssima Trindade de Ricardo de São Vitor, Os Três Dias de Hugo de São Vitor, e muitas outras mais. A beleza extraordinária destes escritos, a profunda sobrenaturalidade que neles se respira, a impressão que elas produzem de estarmos em contato com algo celeste, é conseqüência de terem sido escritas por alguém em que se manifestava a atuação do dom de entendimento. O dom de entendimento é, também, com isso, o modo pelo qual o Espírito Santo confere aos homens uma aptidão especial para o ensino das coisas sagradas.


O dom de sabedoria está associado à mais profunda forma de conhecimento que é possível, com o auxílio da graça, ao ser humano. Ele é de uma ordem mais elevada do que o dom de entendimento e muitíssimo mais ainda do que as formas usuais de conhecimento existentes entre os homens. A causa deste conhecimento é também diferente nos três casos. No conhecimento usual dos homens, a causa do conhecimento é o esforço que o homem faz em aprender. No dom de entendimento, a causa é o agir do Espírito Santo sobre a inteligência do homem já adiantado na vida das virtudes. No caso do dom de sabedoria a causa é uma vivência supereminente do amor a Deus, amor este movido pela atuação do Espírito Santo. Este amor se torna tão intenso e tão mais acima daquele que os homens normalmente costumam experimentar que através dele Deus infunde na alma uma outra forma de conhecimento mais alta do que o que provém do dom de entendimento. Por isso é que este dom se chama de sabedoria; segundo o modo comum de entender dos homens, sabedoria é o mais elevado conhecimento possível. Assim também entre os dons do Espírito Santo enumera-se o dom de sabedoria, por meio do qual o Espírito Santo nos move ao mais elevado conhecimento possível e à mais elevada forma de contemplação que o homem pode alcançar. A causa próxima da contemplação produzida pelo dom de sabedoria não é uma ação direta do Espírito Santo sobre a inteligência, mas o modo supereminente da vivência do amor a Deus produzida em nós pela graça do Espírito Santo que Jesus prometeu aos que seguissem os seus preceitos. "Deus nunca dá esta sabedoria sem amor", diz São João da Cruz, "pois é o próprio amor que a infunde, como afirma o profeta Jeremias quando diz: `Enviou o Senhor fogo aos meus ossos, e ensinou-me'". O dom de sabedoria, desta maneira, leva o preceito do amor a Deus às suas máximas possibilidades; as pessoas que são conduzidas pelo dom de sabedoria amam a Deus como Jesus ensinou que deveríamos amá-Lo, isto é, conforme vimos, "com todo o nosso coração, com toda a nossa alma, como todo o nosso entendimento, com todas as nossas forças". É humanamente impossível praticar este mandamento em todo o seu real significado sem o auxílio do dom de sabedoria. O dom de sabedoria, ademais, eleva ao seu mais alto nível todos os outros dons do Espírito Santo cujas manifestações o precederam; com isto, também, a vida de todas as virtudes alcança o seu grau máximo. "Aqueles que alcançaram o dom de sabedoria", diz um teólogo dominicano recente, "parecem ter perdido completamente o sentido do humano e o terem substituído pelo sentido do divino com que vêem e julgam a todas as coisas. Teriam que fazer-se uma grande violência para descer aos pontos de vista com que a mesquinhez humana julga todas as coisas. Não chamam desgraça ao que os homens costumam chamá-la, isto é, uma enfermidade, uma perseguição, a morte, mas unicamente àquilo que o é na realidade, por sê-lo diante de Deus, isto é, ao pecado, à indiferença, à infidelidade à graça divina. As maiores provações, sofrimentos e contrariedades não conseguem perturbar um só momento a paz inefável de suas almas, como se eles já estivessem na eternidade. Mas o efeito mais impressionante diante dos homens do dom de sabedoria é a morte total ao próprio eu. Aqueles que são conduzidos pelo dom de sabedoria amam a Deus com um amor puríssimo, apenas por sua infinita bondade, sem mistura de interesse ou de motivos humanos, sem, porém renunciar ao céu, o que na verdade desejam mais do que nunca, mas apenas porque deste modo poderão amar a Deus com maior intensidade". Mas, ao contrário do dom de entendimento, que permite ao homem ensinar com mais perfeição as coisas de Deus, nem sempre é possível dar conta do que se aprende pelo dom de sabedoria. Segundo Santo Tomás de Aquino, o conhecimento que advém pelo dom de sabedoria é algo de deiforme; através dele podemos conhecer a Deus mais profundamente e amá-Lo até ao limite de nossas possibilidades, mas nem sempre é possível explicar o que dele se conhece desta maneira. Ocorre, porém, que quando se manifesta o dom de sabedoria no homem, todos os demais dons, e com eles o dom de entendimento, sobem para um plano mais elevado, de modo que, indiretamente, através do efeito que o dom de sabedoria produz sobre o dom de entendimento, aqueles que o alcançaram podem ensinar mais plenamente do que aqueles que chegaram apenas ao dia do entendimento.


Deduz-se, ademais, desta longa explicação, uma outra importante conclusão. Na segunda aula afirmamos que os objetivos da vida cristã são o amor a Deus e ao próximo; que amar a Deus se torna realidade através do trabalho de nossa santificação, sem o qual não é possível amar a Deus; que o amor ao próximo se torna uma realidade mais plena através do ensino, que é, para Jesus, a prova de amor que ele deseja de nós. Vemos agora, porém, que nenhuma destas duas coisas é possível sem o Espírito Santo, pois é através do dom de entendimento que o homem se torna verdadeiramente capaz de ensinar e é através do dom de sabedoria que o homem se torna verdadeiramente capaz de amar a Deus. Aos dois maiores mandamentos correspondem também os dois maiores dons. Ao mandamento do amor a Deus, que é o maior de todos os mandamentos, corresponde o dom de sabedoria, que é o maior de todos os dons do Espírito Santo. Ao segundo mandamento, o do amor ao próximo, corresponde o dom de entendimento, que é também o segundo dentre os dons do Espírito Santo. E assim como o dom de entendimento alcança sua plenitude quando se eleva sob a influência do dom de sabedoria, assim também o amor ao próximo somente alcança toda a sua perfeição quando toma a sua força do preceito do amor a Deus. Para que possamos realizar ambas estas coisas o Senhor nos convida insistentemente a que removamos todos os obstáculos e posterguemos todos os nossos cuidados, para, com o melhor de nossas forças, nos colocarmos ao seu serviço. Depois ainda nos pergunta, no décimo terceiro capítulo do Evangelho de São João:
Continua...

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