quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Na fragilidade o poder de Deus

[osservatoreromano]
Por José Tolentino Mendonça


O excerto de 1 Coríntios 1, 25 — «Pois a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens» — provoca desde sempre, tanto ao longo dos séculos como no tempo presente, a mesma inesgotável admiração. Nele o apóstolo trata nada menos que o desconcertante tema da fragilidade de Deus, fazendo-o de maneira inesquecível.
Não faltam as traduções que tentam ocultar a dificuldade, procurando mascarar o seu desconforto com perífrases e sintaxes forjadas justamente para evitar a linguagem da «loucura de Deus» ou da «fraqueza de Deus», preferindo um dispositivo moderador: «o que os homens acreditam ser loucura», «o que é considerado fraqueza».
O ponto é que a literalidade de 1 Coríntios 1, 25 levanta muitas questões perturbadoras. Um dos comentários clássicos deste trecho é de Teódoto de Ancira, um teólogo do século V que resumiu esta apreensão suscitada por São Paulo deste modo: «Mas como pode ser frágil o criador dos céus? Qual fragilidade pode ser aquela que com uma só palavra criou todas as coisas? O que é a fragilidade de Deus?» (cf. Homilias cristológicas e marianas, 1992). Mais adiante, o próprio Teodoto indica uma resposta: Deus é frágil porque «assumiu sobre si as minhas fragilidades, pondo fim às nossas fragilidades». Contudo, cada vez que lemos este trecho as perguntas apresentam-se novamente.
O texto do versículo 25 está naturalmente inserido num contexto. Ele abrange uma primeira grande unidade literária que corresponde aos primeiros quatro capítulos iniciais (1, 10-4, 21) da Primeira Carta aos Coríntios. Um marcador da unidade desta ampla exortação que abre a carta é o verbo parakaló (exorto) que aparece no início (1, 10) e quase no final da secção (4, 16). Partindo daqui, podemos dizer que o tom do discurso, não por acaso bem estruturado, reflete uma preocupação prática e pastoral, a mesma que certamente impeliu Paulo a escrever toda a epístola.
Ora, a grande unidade literária formada por 1, 10-4, 21 inclui diversas secções. E existe um consenso em situar o nosso excerto de 1 Coríntios 1, 25 na segunda secção.
Depois de ter tratado, numa primeira etapa, os conflitos e as divisões no âmbito da comunidade de Corínto, o apóstolo passa a desenvolver outro topos, que o versículo 18 sintetiza com perfeição: «A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas, para os que foram salvos, para nós, é uma força divina». Os dois termos palavra (logos) e cruz, realçados, estão em relação evidente com a expressão final «poder de Deus», assim como se encontram também reciprocamente ligados entre si «loucura» e «os que se perdem». É por isso que Paulo fala de loucura e sabedoria, de fraqueza e de força.
Deve-se mencionar ainda que 1 Coríntios 1, 25 se insere na subsecção 1, 18-25, que trata a loucura e a fragilidade da cruz como de sabedoria e força de Deus. Com um gesto perentório, o apóstolo enfrenta o escândalo do Messias crucificado. E introduz no discurso uma novidade decisiva: a cruz não é um absurdo mas é uma linguagem de rutura que inaugura de novo a revelação de Deus. A cruz abate, como diz Christophe Senft, os edifícios do conhecimento da verdade religiosa que estavam em vigor até Jesus, fossem eles pagãos ou judaicos. Podemos dizer que 1 Coríntios 1, 25 é a coroação da argumentação desta subsecção.
A loucura e a fraqueza são relativas ao próprio evento da cruz, e reinterpretam o nosso conhecimento acerca da sabedoria e da força de Deus. A loucura e a fragilidade são o novo regime da teofania, uma nova gramática do divino à qual é preciso obedecer. A obstinada focalização de Paulo sobre a cruz é bem sugerida no versículo 25, mas de uma forma que as traduções têm dificuldade em interpretar. Os termos loucura e fragilidade não são substantivos abstratos, mas adjetivos ancorados no concreto. E, no contexto atual, é a inteira humanidade (e não este ou aquele povo) que se encontra diante da ação de Deus que se manifesta em Jesus Cristo crucificado.
Quanto à caraterização estilística, parece aceitável a tese de Raymond F. Collins (First Corinthians, 1999) que evidencia o recurso da figura das litotes, a qual exprime retoricamente uma ideia através do seu contrário, e deste modo abre a uma semântica de segundo nível. Dizendo a fragilidade de Deus, Paulo paradoxalmente está a afirmar a sua força. Mas é importante compreender que neste versículo 25 não temos simplesmente um tour de force retórico. É a acentuação, como afirma Richard B. Hays, de «um ponto teológico fundamental» do evangelho de Paulo: o modo em que a própria cruz, enquanto evento salvífico no qual Deus se revela, desconstrói as expetativas humanas.
A mensagem da cruz confunde tanto os judeus como os gregos, que esperam sinais credíveis de poder ou argumentos persuasivos de sabedoria. O Messias poderia ser simplesmente um «profeta poderoso em obras e em palavras» (Lucas 24, 19) que distribui provas sobrenaturais do favor de Deus. Ou, em estilo helênico, um sábio mestre de verdades filosóficas. Contudo, o apóstolo nada tem para lhes oferecer neste sentido. Põe-nos simplesmente diante do «Messias crucificado» (1 Coríntios 1, 23).
Deus desconstrói deste modo o que pareciam ser as expetativas e os critérios consolidados em relação ao seu agir. E o seu Messias revelar-se-á pelo avesso — um avesso que nos desarma incessantemente — quando morrer como um criminoso derrotado pelo castigo da cruz. A convivência rotineira com a linguagem de Paulo (que é uma linguagem tensa, transparente e excessiva, como ele mesmo é) talvez tenha atenuado em nós o escândalo desta mensagem. Mas não nos esqueçamos: proclamar um Messias crucificado é encenar o teatro do absurdo, é deslocar o quadro das convicções sobre Deus aos antípodas, é habitar o arrepio e o desconcerto. Os ouvidos mediterrâneos que ouviam Paulo sabiam bem o que significava uma crucificação. Todos a compreendiam como uma punição extrema e macabra que os romanos impunham como castigo exemplar, sobretudo aos agitadores e rebeldes que punham em questão a pax romana. Enfim, era uma forma pública de tortura e de extermínio para garantir que ninguém ousasse, mesmo só pelo horror especial que ela inspirava, desafiar o poder constituído.
O topos da fragilidade de Deus é, por muitas razões, um motivo delicado, para não dizer de caráter inaudito. As reservas e as atenuações que acompanharam historicamente a receção do nosso versículo afirmam isto. Mas há uma questão dupla que se impõe quando lemos 1 Coríntios 1, 25 com este propósito: como chegou Paulo a este arriscado topos da fragilidade de Deus? neste versículo a fragilidade de Deus é realmente enfrentada por Paulo ou ela faz uma aparição puramente instrumental no desenvolvimento argumentativo de outra questão mais em sintonia com a teologia tradicional (a questão do poder de Deus, por exemplo)?

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