sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Por que os padres do Líbano acham que casamento é melhor que celibato


Todo domingo, às 10h30, o Pe. Charles celebra a missa em Bziza, zona rural ao norte do Líbano. Hoje, ele conta à congregação de aproximadamente cem fiéis como o anjo Gabriel revelou à Maria que ela estava grávida. Em seguida, a comunidade se põe de pé para cantar e, depois, ajoelha-se para rezar.
A reportagem é de Chloe Domat, publicada por Al-Monitor, 28-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Depois da Eucaristia, Charles Kassas tira a batina branca para se juntar à sua esposa Brigitte e seus três filhos – Nadim, Celine e Mathieu. Nos países ocidentais, onde os padres devem fazer votos de castidade, esta cena provocaria um escândalo, mas no Líbano ela é bastante comum.
“É óbvio que sei que ele é casado, e daí? Seria estranho se ele não fosse!”, diz uma idosa ao sair da igreja.
Em Bziza, a maioria da população é cristã maronita – membros da Igreja Católica oriental fundada no século V. Esta igreja segue o Vaticano, mas não exige que os seus padres sejam solteiros. Consequentemente, mais da metade dos padres no Líbano tem família.
No Líbano, outras comunidades católicas – incluindo católicos gregos, católicos armênios e católicos sírios – também aceitam padres casados.
Para Kassas, não há contradição entre a conjugalidade e o chamado de Deus – na verdade, acontece exatamente o contrário. Ele acha que ter uma família lhe traz um equilíbrio pessoal. “Não podemos servir os outros se não estamos em paz. Ser marido e ser pai me ajuda a ser um padre melhor para a paróquia”, contou ele ao Al-Monitor.
Charles e Brigitte estão casados há mais de 20 anos. Em paróquias pequenas como esta, a esposa do padre tem uma função social importante. Em árabe, ela é chamada de “khouriye”, feminino para “khoury” (padre).
“Ela é a força que sustenta a nossa família e é uma verdadeira parceira para mim”, acrescenta Kassas.
Em geral, espera-se que a esposa de um padre frequente as celebrações religiosas e todos os demais eventos, como nascimentos, batizados, casamentos e funerais. Ela pode às vezes dar conselhos e é a pessoa-referência quando o marido não está disponível. A casa da família deve ficar aberta a visitas 24 horas por dia, sete dias por semana.
“Não é nada fácil. Quando me casei, não sabia que ser esposa de um padre exigiria tanto assim. Sempre tem algo a fazer, alguém para acomodar”, disse ela Al-Monitor.
Visando preparar outras mulheres para este papel, algumas esposas de padres criaram oficinas e programas de formação para as jovens noivas.
Em cidades maiores, os padres tendem a trabalhar em uma sala de escritório. As casas deles são propriedades privadas e suas esposas têm menos responsabilidades junto aos fiéis.
Os padres casados formam uma tradição que remonta aos primórdios do cristianismo, antes de a igreja latina impor uma proibição a eles no século XI. Por muito tempo no Líbano os moradores locais escolhiam os padres entre os homens casados que já haviam provado terem condições de manter uma família. Aqueles que desejassem manter-se solteiro se uniriam aos mosteiros para tornarem-se monges.
Hoje, a questão sobre se os padres podem – ou não – se casar surge, em geral, nos anos de seminário no Líbano.
Charles tomou sua decisão aos 25 anos, em seu quarto ano de estudos teológicos. “Concluí que eu queria me unir ao sacerdócio, mas também desejava profundamente ter uma família. Senti a necessidade de ser amado por uma mulher e ter filhos”, contou o religioso.
Quando perguntado se conseguiria abrir mão da vida em família, como fazem os padres europeus, respondeu que não. “Alguns conseguem viver como eremitas. Eu não. Não tenho a capacidade de superar esse tipo de solidão”, explicou.
Permitir que homens casados se tornem padres é também uma forma de a Igreja acolher pessoas mais velhas que tiveram uma vida diferente antes.
É o caso de Mansour Zeidan. Aos 36 anos de idade, ele está prestes a mudar de carreira. Por enquanto, ele é o proprietário orgulhoso da “Mr & Mrs Clown”, empresa que realiza festas de aniversário criada por ele dez anos atrás. Mas em breve as fantasias e as decorações farão parte de seu passado. Em poucas semanas, ele será ordenado padre.
“Eu sinto muito que ele vai passar todo o seu tempo na igreja e vai me deixar sozinha com o nosso filho”, Yolla, sua esposa, falou.
“Eu quis ter a oportunidade de tentar várias coisas antes de tomar a minha decisão”, disse ele, listando empregos anteriores como o de caixa de supermercado, vigia noturno, administrador de sites na internet e supervisor escolar.
Zeidan estuda para se unir ao sacerdócio. Ele cursa teologia na universidade e está finalizando uma formação prática em uma igreja perto de Beirute.
O Pe. Marwan Mouawad, que também é casado, ensina-o como usar a sua experiência de homem de família para alimentar a sua relação com os fiéis. “Por exemplo, quando estiver diante de uma questão envolvendo marido e mulher, ou envolvendo a relação entre pais e filhos, nós não teremos apenas teorias; podemos tirar exemplos das nossas próprias vidas pessoais e, para as pessoas, isso é muito importante”, disse Mouawad ao sítio Al-Monitor.
À noite, Zeidan se junta a um grupo de seminaristas em Burj Hammoud, bairro carente perto de Beirute. Entre as distribuições de refeições e círculos de oração, os futuros clérigos debatem o casamento.
“Ser padre é uma vocação, mas ter uma família também é uma vocação. É perigoso reprimir um desejo interior à custa dos demais; nunca vamos ser felizes assim”, disse Charbel Fakhry, seminarista de 29 anos que escolheu o celibato.
Embora homens casados possam se tornar padres, o contrário não acontece. Os padres que foram ordenados solteiros não podem mudar de ideia mais tarde. Eles podem aspirar, no entanto, ascender na hierarquia e tornarem-se bispos, o que é proibido aos padres casados.
Johnny Estephan, de 22 anos, ainda não se decidiu. “Um pai tem um senso de responsabilidade, ele sabe o que significa se levantar às 2 horas da manhã para alimentar um bebê. Isso nos prepara no sentido de termos responsabilidade por nossa paróquia, mas temos que poder lidar com as duas coisas”, disse.
Devemos também poder sustentar a própria família. No Líbano, o salário de um padre, de aproximadamente 400 dólares, não é suficiente. Desse modo, eles em geral têm um outro emprego.
Após ser ordenado, Zeidan planeja retomar o seu antigo trabalho de supervisor em alguma escola cristã. Ele também sonha em ter um segundo filho.

Fonte - unisinos

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