A carta apostólica, datada de 23 de novembro, solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, exorta os cristãos a serem "um sinal de paz e um instrumento de reconciliação".
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| Papa Leão publica “In unitate fidei” |
Na véspera de sua viagem apostólica à Turquia para comemorar o 1700º aniversário do Concílio Ecumênico de Niceia, o Papa Leão XIV publicou a carta apostólica In unitate fidei (ver abaixo), reafirmando "na unidade da fé" a resposta dos Padres Conciliares que "confessaram que Jesus é o Filho de Deus".
A profissão de fé em Jesus Cristo como o centro do cristianismo.
"Na unidade da fé, proclamada desde as origens da Igreja, os cristãos são chamados a caminhar juntos, guardando e transmitindo com amor e alegria o dom recebido", começa assim a carta apostólica que aprofunda os temas essenciais do Concílio de Niceia e sua importância atual para a fé da Igreja e dos batizados.
Leão XIV destaca que "neste Ano Santo dedicado a Cristo, que é a nossa esperança, é uma providencial coincidência que celebremos também o 1700º aniversário do primeiro Concílio Ecumênico de Niceia, que em 325 proclamou a profissão de fé em Jesus Cristo, Filho de Deus. Este é o coração da fé cristã."
O Papa recordou que os tempos do Concílio de Niceia não foram menos turbulentos que os nossos. Quando começou, em 325, “as feridas das perseguições contra os cristãos ainda estavam frescas”. Paralelamente às ameaças externas, “surgiram disputas e conflitos dentro da Igreja”, especialmente em relação à doutrina de Ário, que “ensinava que Jesus não era verdadeiramente o Filho de Deus”.
A resposta histórica dos Padres Conciliares
Os Padres Conciliares de Niceia "confessaram que Jesus é o Filho de Deus na medida em que é 'da mesma substância (ousia) que o Pai [...] gerado, não criado, da mesma substância (homoousios) que o Pai'". Com essa definição, a tese de Ário foi radicalmente rejeitada.
O Papa destaca o verbo do Credo Niceno "descer ", que significa "ele desceu", e a "afirmação bíblica" de que "ele se fez carne". Ele explica que "Niceia se distancia, assim, da falsa doutrina segundo a qual o Logos assumia apenas um corpo como cobertura exterior, mas não a alma humana, dotada de entendimento e livre-arbítrio".
Como ensina Santo Atanásio: “O Filho de Deus se fez homem para que nós, como seres humanos, pudéssemos ser divinizados”. O documento esclarece que “a divinização não tem nada a ver com a autodeificação do homem. Pelo contrário, a divinização nos protege da tentação primordial de querer ser como Deus”.
Um exame de consciência para os cristãos de hoje.
Em sua carta, Leão XIV adverte que “hoje, para muitos, Deus e a questão de Deus quase perderam o seu sentido na vida”. O Concílio Vaticano II enfatizou que os cristãos são, pelo menos em parte, responsáveis por essa situação, porque “não dão testemunho da verdadeira fé e obscurecem a face autêntica de Deus com estilos de vida e ações muito distantes do Evangelho”.
O Credo Niceno nos convida a um exame de consciência: "O que Deus significa para mim e como posso testemunhar a fé nele? Deus é o único Senhor da vida, ou existem ídolos mais importantes do que Deus e seus mandamentos?"
"No cerne do Credo Niceno-Constantinopolitano está a profissão de fé em Jesus Cristo, nosso Senhor e Deus. Este é o cerne da nossa vida cristã. É por isso que nos comprometemos a seguir Jesus como Mestre, companheiro, irmão e amigo."
O valor ecumênico de Niceia para a unidade cristã.
O Papa reconhece que "o Concílio de Niceia permanece relevante hoje devido ao seu profundo valor ecumênico". Ele enumera alguns de seus frutos: "Compartilhamos verdadeiramente a fé no único Deus, Pai de todos os povos; confessamos juntos o único Senhor e verdadeiro Filho de Deus, Jesus Cristo, e o único Espírito Santo, que nos inspira e nos impulsiona para a plena unidade e o testemunho comum do Evangelho".
O documento também exorta que "a única Comunidade Cristã universal pode ser um sinal de paz e um instrumento de reconciliação, contribuindo decisivamente para um compromisso global com a paz". Para esse fim, considera necessário "um ecumenismo espiritual de oração, louvor e adoração, como ocorreu nos Credos de Niceia e de Constantinopla".
A carta termina com uma oração ao Espírito Santo: "Mostra-nos os caminhos que devemos seguir, para que, com a tua sabedoria, possamos tornar-nos novamente o que somos em Cristo: um, para que o mundo creia. Amém."
Carta Apostólica “In unitate fidei”
Declaração do Papa Leão XIV por ocasião do 1700º aniversário do Concílio de Niceia, 23.11.2025
1. Na unidade da fé, proclamada desde as origens da Igreja, os cristãos são chamados a caminhar juntos, guardando e transmitindo com amor e alegria o dom que receberam. Isso se expressa nas palavras do Credo: “Cremos em Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, que desceu dos céus para nossa salvação”, formulado pelo Concílio de Niceia, o primeiro evento ecumênico da história do cristianismo, há 1700 anos.
Ao preparar-me para a minha Viagem Apostólica à Turquia, com esta carta desejo encorajar toda a Igreja a um renovado compromisso com a profissão de fé, cuja verdade, que durante séculos tem sido o património comum dos cristãos, merece ser confessada e explorada de maneiras sempre novas e relevantes. A este respeito, foi aprovado um valioso documento da Comissão Teológica Internacional: Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador: O 1700.º Aniversário do Concílio Ecuménico de Niceia. Recomendo-vos a leitura deste documento, pois oferece perspetivas úteis para uma compreensão mais profunda da importância e relevância do Concílio de Niceia, não só teológica e eclesiástica, mas também cultural e socialmente.
2. “O Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”: assim intitula São Marcos o seu Evangelho, resumindo toda a sua mensagem precisamente no sinal da filiação divina de Jesus Cristo. Da mesma forma, o Apóstolo Paulo sabe que é chamado a proclamar o Evangelho de Deus concernente ao seu Filho, que morreu e ressuscitou por nós (cf. Rm 1,9), o que é o “sim” definitivo de Deus às promessas dos profetas (cf. 2 Cor 1,19-20). Em Jesus Cristo, o Verbo que era Deus antes do tempo e por quem todas as coisas foram feitas — como afirma o prólogo do Evangelho de São João — “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Nele, Deus se tornou nosso próximo, de modo que tudo o que fizermos por cada um dos nossos irmãos e irmãs, fazemos por Ele (cf. Mt 25,40).
Neste Ano Santo dedicado a Cristo, que é a nossa esperança, é uma providencial coincidência que celebremos também o 1700º aniversário do Primeiro Concílio Ecumênico de Niceia, que em 325 proclamou a profissão de fé em Jesus Cristo, Filho de Deus. Este é o coração da fé cristã. Ainda hoje, na celebração eucarística dominical, recitamos o Credo Niceno-Constantinopolitano, uma profissão de fé que une todos os cristãos. Ele nos dá esperança nestes tempos difíceis, em meio a tantas preocupações e medos, ameaças de guerra e violência, desastres naturais, graves injustiças e desequilíbrios, e a fome e a miséria sofridas por milhões de nossos irmãos e irmãs.
3. Os tempos do Concílio de Niceia não foram menos turbulentos. Quando começou, em 325, as feridas das perseguições contra os cristãos ainda estavam abertas. O Édito de Milão (313), promulgado pelos imperadores Constantino e Licínio, parecia anunciar o alvorecer de uma nova era de paz. No entanto, em consequência de ameaças externas, logo surgiram disputas e conflitos dentro da Igreja.
Ário, um presbítero de Alexandria, Egito, ensinava que Jesus não era verdadeiramente o Filho de Deus; embora também não fosse meramente uma criatura, ele era um ser intermediário entre o Deus inalcançável e nós. Além disso, houve um tempo em que o Filho "ainda não existia". Isso era consistente com a mentalidade predominante da época e, portanto, parecia plausível.
Mas Deus não abandona a sua Igreja, sempre suscitando homens e mulheres corajosos, testemunhas da fé e pastores que guiam o seu povo e apontam o caminho do Evangelho. O bispo Alexandre de Alexandria percebeu que os ensinamentos de Ário eram incompatíveis com as Sagradas Escrituras. Como Ário não demonstrava qualquer disposição para negociar, Alexandre convocou um sínodo dos bispos do Egito e da Líbia, que condenou os ensinamentos de Ário; em seguida, enviou uma carta aos demais bispos do Oriente para informá-los detalhadamente. No Ocidente, o bispo Ósio de Córdoba, na Espanha, tornou-se ativo. Ele já havia demonstrado ser um fervoroso confessor da fé durante a perseguição sob o imperador Maximiano e gozava da confiança do bispo de Roma, o Papa Silvestre.
Os seguidores de Ário também se uniram. Isso levou a uma das maiores crises da história da Igreja no primeiro milênio. A razão da disputa não era um detalhe menor. Dizia respeito ao próprio cerne da fé cristã, ou seja, à resposta à pergunta crucial que Jesus havia feito aos seus discípulos em Cesareia de Filipe: “Mas vocês, quem dizem que eu sou?” (cf. Mt 16,15).
4. À medida que a controvérsia se intensificava, o Imperador Constantino percebeu que, juntamente com a unidade da Igreja, a unidade do Império também estava ameaçada. Convocou então todos os bispos para um concílio ecumênico, ou seja, universal, em Niceia, para restaurar a unidade. O sínodo, conhecido como o Sínodo dos “318 Padres”, ocorreu sob a presidência do imperador: o número de bispos reunidos foi sem precedentes. Alguns deles ainda carregavam as marcas da tortura sofrida durante a perseguição. A grande maioria era do Oriente, enquanto, aparentemente, apenas cinco eram do Ocidente. O Papa Silvestre confiou na figura teologicamente influente do Bispo Hósio de Córdoba e enviou dois presbíteros romanos.
5. Os Padres do Concílio testemunharam sua fidelidade à Sagrada Escritura e à Tradição Apostólica, professada durante o batismo, segundo o mandamento de Jesus: “Ide, portanto, e fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28,19). No Ocidente, havia várias fórmulas, entre elas o chamado Credo dos Apóstolos. [1] No Oriente, também, havia muitas profissões batismais, semelhantes entre si em sua estrutura. Não se tratava de uma linguagem erudita e complicada, mas sim — como foi dito posteriormente — da linguagem simples compreendida pelos pescadores do Mar da Galileia.
Com base nisso, o Credo Niceno começa professando: “Cremos em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis”. [2] Com isso, os Padres Conciliares expressaram fé no único Deus. Não houve controvérsia sobre esse ponto no Concílio. Em vez disso, um segundo artigo foi debatido, o qual também usa linguagem bíblica para professar fé em “um só Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”. O debate surgiu da necessidade de responder à questão levantada por Ário sobre como a declaração “Filho de Deus” deveria ser entendida e como poderia ser reconciliada com o monoteísmo bíblico. O Concílio foi, portanto, chamado a definir o significado correto da fé em Jesus como “o Filho de Deus”.
Os Padres confessaram que Jesus é o Filho de Deus na medida em que é “da mesma substância (ousia) que o Pai [...] gerado, não criado, da mesma substância (homoousios) que o Pai”. Com esta definição, a tese de Ário foi radicalmente rejeitada. [3] Para expressar a verdade da fé, o Concílio usou duas palavras, “substância” (ousia) e “da mesma substância” (homoousios), que não se encontram nas Escrituras. Ao fazê-lo, não pretendia substituir a filosofia grega pelas afirmações bíblicas. Pelo contrário, o Concílio empregou estes termos para afirmar claramente a fé bíblica, distinguindo-a do erro helenizante de Ário. A acusação de helenização, portanto, não se aplica aos Padres de Niceia, mas à falsa doutrina de Ário e dos seus seguidores.
Em um aspecto positivo, os Padres de Niceia procuraram permanecer firmemente fiéis ao monoteísmo bíblico e à realidade da Encarnação. Eles desejavam reafirmar que o único Deus verdadeiro não está inatingívelmente distante de nós, mas, ao contrário, aproximou-se e veio ao nosso encontro em Jesus Cristo.
6. Para expressar sua mensagem na linguagem simples da Bíblia e da liturgia familiar a todo o Povo de Deus, o Concílio retoma algumas formulações da profissão batismal: “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”. O Concílio adota então a metáfora bíblica da luz: “Deus é luz” (1 Jo 1,5; cf. Jo 1,4-5). Como a luz que irradia e se comunica sem diminuir, assim o Filho é o reflexo (apaugasma) da glória de Deus e a imagem (character) do seu ser (hypostasis) (cf. Hb 1,3; 2 Cor 4,4). O Filho encarnado, Jesus, é, portanto, a luz do mundo e da vida (cf. Jo 8,12). Pelo batismo, os olhos do nosso coração são iluminados (cf. Ef 1,18), para que também nós sejamos luz no mundo (cf. Mt 5,14).
Finalmente, o Credo afirma que o Filho é “Deus verdadeiro, vindo de Deus verdadeiro”. Em muitas passagens, a Bíblia distingue entre ídolos mortos e o Deus verdadeiro e vivo. O Deus verdadeiro é o Deus que fala e age na história da salvação: o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, que se revelou a Moisés na sarça ardente (cf. Ex 3,14), o Deus que vê a miséria do povo, ouve o seu clamor, guia-o e acompanha-o pelo deserto com a coluna de fogo (cf. Ex 13,21), fala-lhe com voz de trovão (cf. Dt 5,26) e tem compaixão dele (cf. Os 11,8-9). Os cristãos são, portanto, chamados a se converterem dos ídolos mortos para o Deus vivo e verdadeiro (cf. At 12,25; 1 Ts 1,9). Nesse sentido, Simão Pedro confessa em Cesareia de Filipe: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” ( Mt 16,16).
7. O Credo Niceno não formula uma teoria filosófica. Ele professa a fé no Deus que nos redimiu por meio de Jesus Cristo. Este é o Deus vivo: Ele deseja que tenhamos vida e a tenhamos em abundância (cf. Jo 10,10). Portanto, o Credo continua com as palavras da profissão batismal: o Filho de Deus “que por nós homens e para nossa salvação desceu dos céus, e se encarnou, e se fez homem; morreu e ressuscitou ao terceiro dia, e subiu aos céus, e há de vir outra vez para julgar os vivos e os mortos”. Isso deixa claro que as afirmações cristológicas de fé do Concílio estão inseridas na história da salvação entre Deus e suas criaturas.
Santo Atanásio, que participou do Concílio como diácono do Bispo Alexandre e o sucedeu na Sé de Alexandria, no Egito, enfatizou repetida e eficazmente a dimensão soteriológica expressa no Credo Niceno. Ele escreve, em essência, que o Filho, que desceu do céu, “nos fez filhos do Pai e, tendo-se feito homem, divinizou os homens. Não é que, sendo homem, ele posteriormente se tornou Deus, mas que, sendo Deus, ele se fez homem para nos divinizar”. [4] Somente se o Filho é verdadeiramente Deus é que isso é possível: nenhum ser mortal, de fato, pode vencer a morte e nos salvar; somente Deus pode fazê-lo. Ele nos libertou em seu Filho feito homem para que pudéssemos ser livres (cf. Gl 5,1).
O verbo descendit, “desceu”, no Credo Niceno, merece destaque. São Paulo descreve esse movimento com expressões poderosas: “[Cristo] esvaziou-se a si mesmo, assumindo a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens” (Filipenses 2:7), assim como o prólogo do Evangelho de João: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João 1:14). Portanto, ensina a Carta aos Hebreus, “não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas sim alguém que, como nós, foi tentado, mas sem pecado” (Hebreus 4:15). Na noite anterior à sua morte, ajoelhou-se como um servo para lavar os pés dos seus discípulos (cf. João 13:1-17). E o apóstolo Tomé, somente quando pôde tocar a ferida no lado do Senhor ressuscitado, confessou: “Meu Senhor e meu Deus!” (João 20,28).
É precisamente em virtude de sua Encarnação que encontramos o Senhor em nossos irmãos e irmãs necessitados: “Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). O Credo Niceno, portanto, não nos fala de um Deus distante, inatingível e imóvel, que repousa em si mesmo, mas de um Deus próximo de nós, que nos acompanha em nossa jornada pelos caminhos do mundo e nos lugares mais obscuros da terra. Sua imensidão se manifesta no fato de que Ele se faz pequeno, despoja-se de sua infinita majestade, tornando-se nosso próximo nos humildes e pobres. Isso revoluciona as concepções pagãs e filosóficas de Deus.
Outra palavra do Credo Niceno é particularmente reveladora para nós hoje. A afirmação bíblica “se fez carne”, esclarecida pela adição da palavra “homem” após a palavra “encarnado”, distancia-se assim da falsa doutrina segundo a qual o Logos assumiu apenas um corpo como revestimento exterior, mas não a alma humana, dotada de entendimento e livre-arbítrio. Pelo contrário, afirma o que o Concílio de Calcedônia (451) declararia explicitamente: em Cristo, Deus assumiu e redimiu todo o ser humano, corpo e alma. O Filho de Deus se fez homem — explica Santo Atanásio — para que nós, como seres humanos, pudéssemos ser divinizados. [5] Essa luminosa compreensão da Revelação divina havia sido preparada por Santo Irineu de Lyon e Orígenes, e foi posteriormente desenvolvida com grande riqueza na espiritualidade oriental.
A divinização não tem nada a ver com a autodeificação do homem. Pelo contrário, a divinização nos protege da tentação primordial de querer ser como Deus (cf. Gn 3,5). O que Cristo é por natureza, nós nos tornamos pela graça. Através da obra da redenção, Deus não apenas restaurou nossa dignidade humana como imagem de Deus, mas Aquele que nos criou de maneira maravilhosa nos tornou participantes, de maneira ainda mais maravilhosa, de sua natureza divina (cf. 2 Pe 1,4).
A divinização é, portanto, a verdadeira humanização. É por isso que a existência do homem aponta para além de si mesma, busca além de si mesma, deseja além de si mesma e está inquieta até repousar em Deus: [6] Deus enim solus satiat, Só Deus satisfaz o homem! [7] Só Deus, em sua infinitude, pode satisfazer o desejo infinito do coração humano, e é por isso que o Filho de Deus quis tornar-se nosso irmão e redentor.
8. Dissemos que Niceia rejeitou claramente os ensinamentos de Ário. Mas Ário e seus seguidores não desistiram. O próprio imperador Constantino e seus sucessores alinharam-se cada vez mais com os arianos. O termo homoousios tornou-se o pomo da discórdia entre nicenos e anti-nicenos, desencadeando assim outros conflitos graves. São Basílio de Cesareia descreve a confusão resultante com imagens eloquentes, comparando-a a uma batalha naval noturna em meio a uma violenta tempestade, [8] enquanto Santo Hilário testemunha a ortodoxia dos leigos diante do arianismo de muitos bispos, reconhecendo que “os ouvidos do povo são mais santos do que os corações dos sacerdotes”. [9]
A rocha do Credo Niceno foi Santo Atanásio, inabalável e firme na fé. Embora tenha sido deposto e expulso da sé episcopal de Alexandria cinco vezes, retornou a cada vez como bispo. Mesmo no exílio, continuou a guiar o Povo de Deus por meio de seus escritos e cartas. Como Moisés, Atanásio não pôde entrar na terra prometida da paz eclesial. Essa graça foi reservada para uma nova geração, conhecida como os “Jovens Padres Nicenos”: no Oriente, os três Padres Capadócios, São Basílio de Cesareia (c. 330–379), que recebeu o título de “o Grande”, seu irmão São Gregório de Nissa (335–394) e o amigo mais próximo de Basílio, São Gregório Nazianzeno (329/30–390). No Ocidente, Santo Hilário de Poitiers (c. 315–367) e seu discípulo São Martinho de Tours (c. 316–397) foram figuras importantes. E, acima de tudo, Santo Ambrósio de Milão (333-397) e Santo Agostinho de Hipona (354-430).
O mérito dos três capadócios, em particular, foi levar à conclusão a formulação do Credo Niceno, mostrando que a Unidade e a Trindade em Deus não são de modo algum contraditórias. Nesse contexto, o artigo de fé concernente ao Espírito Santo foi formulado no Primeiro Concílio de Constantinopla em 381. Assim, o Credo, que a partir de então passou a ser chamado de Credo Niceno-Constantinopolitano, afirma: “Cremos no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai. Com o Pai e o Filho, Ele é adorado e glorificado, e falou pelos profetas.” [10]
Desde o Concílio de Calcedônia em 451, o Concílio de Constantinopla foi reconhecido como ecumênico, e o Credo Niceno-Constantinopolitano foi declarado universalmente vinculativo. [11] Desta forma, tornou-se um elo de unidade entre o Oriente e o Ocidente. No século XVI, foi também defendido pelas comunidades eclesiais surgidas da Reforma. O Credo Niceno-Constantinopolitano tornou-se, assim, a profissão comum de todas as tradições cristãs.
9. O caminho das Sagradas Escrituras ao Credo Niceno, depois à sua recepção por Constantinopla e Calcedônia, e novamente aos séculos XVI e XXI, foi longo e linear. Todos nós, como discípulos de Jesus Cristo, somos batizados, fazemos o sinal da cruz e recebemos uma bênção "em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo". Concluímos a oração dos salmos na Liturgia das Horas com "Glória ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito Santo". A liturgia e a vida cristãs estão, portanto, firmemente ancoradas nos Credos Niceno e Constantinopla: o que dizemos com a boca deve vir do coração, para que seja testemunhado em nossas vidas. Devemos nos perguntar, então: o que aconteceu com a recepção interior do Credo hoje? Sentimos que ele também se aplica à nossa situação atual? Compreendemos e vivemos o que dizemos todos os domingos, e o que isso significa para as nossas vidas?
10. O Credo Niceno começa professando a fé em Deus Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra. Hoje, para muitos, Deus e a questão de Deus quase perderam o seu significado na vida. O Concílio Vaticano II enfatizou que os cristãos são, pelo menos em parte, responsáveis por esta situação, porque não dão testemunho da verdadeira fé e obscurecem a face autêntica de Deus com estilos de vida e ações muito distantes do Evangelho .[12] Em nome de Deus, guerras foram travadas, pessoas foram mortas, perseguidas e discriminadas. Em vez de proclamar um Deus misericordioso, fala-se de um Deus vingativo que inspira terror e castigo.
O Credo Niceno, portanto, convida-nos a um exame de consciência. O que significa Deus para mim e como dou testemunho da minha fé n'Ele? É Deus, o único Senhor da vida, verdadeiramente o Senhor, ou existem ídolos mais importantes do que Deus e os Seus mandamentos? É Deus para mim o Deus vivo, presente em todas as situações, o Pai a quem me volto com confiança de criança? É Ele o Criador a quem devo tudo o que sou e tudo o que tenho, cujos vestígios posso encontrar em cada criatura? Estou disposto a partilhar os bens da terra, que pertencem a todos, de forma justa e equitativa? Como trato a criação, que é obra das Suas mãos? Uso-a com reverência e gratidão, ou exploro-a e destruo-a, em vez de a proteger e cultivar como a casa comum da humanidade? [13]
11. No cerne do Credo Niceno-Constantinopolitano está a profissão de fé em Jesus Cristo, nosso Senhor e Deus. Este é o núcleo da nossa vida cristã. Portanto, comprometemo-nos a seguir Jesus como Mestre, companheiro, irmão e amigo. Mas o Credo Niceno pede mais: lembra-nos que não devemos esquecer que Jesus Cristo é o Senhor (Kyrios), o Filho do Deus vivo, que “desceu dos céus para a nossa salvação” e morreu “por nós” na cruz, abrindo-nos o caminho da vida nova através da sua ressurreição e ascensão.
Certamente, seguir Jesus Cristo não é um caminho amplo e confortável, mas este caminho, muitas vezes exigente ou mesmo doloroso, conduz sempre à vida e à salvação (cf. Mt 7,13-14). Os Atos dos Apóstolos falam do novo caminho (cf. At 19,9.23; 22,4.14-15.22), que é Jesus Cristo (cf. Jo 14,6): seguir o Senhor compromete os nossos passos com o caminho da cruz, que pela conversão nos conduz à santificação e à divinização. [14]
Se Deus nos ama com todo o seu ser, então nós também devemos amar uns aos outros. Não podemos amar a Deus, a quem não vemos, sem também amar os nossos irmãos e irmãs, a quem vemos (cf. 1 Jo 4,20). O amor a Deus sem o amor ao próximo é hipocrisia; o amor radical ao próximo, especialmente o amor aos inimigos, sem o amor a Deus, é um heroísmo que nos oprime e nos sufoca. Ao seguir Jesus, a ascensão a Deus passa pela humildade e pela entrega de si aos nossos irmãos e irmãs, especialmente aos mais humildes, aos mais pobres, aos abandonados e aos marginalizados. Tudo o que fizemos pelos mais pequeninos destes, fizemos por Cristo (cf. Mt 25,31-46). Perante as catástrofes, as guerras e a miséria, só podemos dar testemunho da misericórdia de Deus aos que duvidam dele quando estes a experimentam através de nós. [15]
12. Finalmente, o Concílio de Niceia permanece relevante hoje devido ao seu profundo valor ecumênico. A este respeito, a conquista da unidade cristã foi um dos principais objetivos do último Concílio, o Vaticano II. [16] Exatamente trinta anos atrás, São João Paulo II continuou e promoveu a mensagem conciliar na Encíclica Ut unum sint (25 de maio de 1995). Assim, com a grande comemoração do primeiro Concílio de Niceia, celebramos também o aniversário da primeira encíclica ecumênica. Ela pode ser considerada um manifesto que atualizou esses mesmos fundamentos ecumênicos lançados pelo Concílio de Niceia.
Graças a Deus, o movimento ecumênico alcançou resultados consideráveis nos últimos sessenta anos. Embora ainda não tenhamos alcançado a plena unidade visível com as Igrejas Ortodoxas e Ortodoxas Orientais e com as comunidades eclesiais surgidas da Reforma, o diálogo ecumênico nos levou, com base no único batismo e no Credo Niceno-Constantinopolitano, a reconhecer nossos irmãos e irmãs em Jesus Cristo nos irmãos e irmãs das outras Igrejas e comunidades eclesiais, e a redescobrir a única e universal Comunidade dos discípulos de Cristo em todo o mundo. De fato, compartilhamos a fé no único Deus, Pai de toda a humanidade; juntos confessamos o único Senhor e verdadeiro Filho de Deus, Jesus Cristo, e o único Espírito Santo, que nos inspira e nos impulsiona para a plena unidade e o testemunho comum do Evangelho. Verdadeiramente, o que nos une é muito maior do que o que nos divide! [17] Assim, num mundo dividido e dilacerado por muitos conflitos, a única Comunidade Cristã universal pode ser um sinal de paz e um instrumento de reconciliação, contribuindo decisivamente para um compromisso global com a paz. São João Paulo II recordou-nos, em particular, o testemunho dos muitos mártires cristãos de todas as Igrejas e comunidades eclesiais: a sua memória une-nos e impele-nos a ser testemunhas e construtores da paz no mundo.
Para exercer este ministério de forma credível, devemos caminhar juntos rumo à unidade e à reconciliação entre todos os cristãos. O Credo Niceno pode ser o fundamento e o princípio orientador desta jornada. Ele nos oferece, de fato, um modelo de verdadeira unidade na legítima diversidade. Unidade na Trindade, Trindade na Unidade, porque unidade sem multiplicidade é tirania, e multiplicidade sem unidade é desintegração. A dinâmica trinitária não é dualista, como uma exclusão do tipo "ou isto ou aquilo", mas sim um vínculo que implica um "e" : o Espírito Santo é o elo da unidade, a quem adoramos juntamente com o Pai e o Filho. Portanto, devemos deixar para trás as controvérsias teológicas que perderam seu propósito, a fim de adquirir um entendimento comum e, ainda mais importante, uma oração comum ao Espírito Santo, para que Ele nos reúna a todos em uma só fé e um só amor.
Isso não significa um ecumenismo que retorne ao estado anterior às divisões, nem um reconhecimento mútuo do atual status quo da diversidade de Igrejas e comunidades eclesiais, mas sim um ecumenismo orientado para o futuro, para a reconciliação através do diálogo, através da troca de nossos dons e herança espirituais. A restauração da unidade entre os cristãos não nos empobrece; pelo contrário, nos enriquece. Como em Niceia, esse objetivo só será possível através de uma jornada paciente, longa e, por vezes, difícil, de escuta e aceitação mútua. Este é um desafio teológico e, sobretudo, um desafio espiritual, que exige arrependimento e conversão de todos. Portanto, precisamos de um ecumenismo espiritual de oração, louvor e adoração, como ocorreu nos Credos de Niceia e Constantinopla.
Invoquemos, portanto, o Espírito Santo para que nos acompanhe e nos guie nesta obra.
Espírito Santo de Deus, tu guias os crentes no caminho da história.
Agradecemos por inspirar os Símbolos da Fé e por despertar em nossos corações a alegria de professar nossa salvação em Jesus Cristo, Filho de Deus, consubstancial ao Pai. Sem Ele, nada podemos fazer.
Tu, Espírito eterno de Deus, rejuvenesce a fé da Igreja de geração em geração. Ajuda-nos a aprofundá-la e a retornar sempre ao seu essencial para proclamá-la.
Para que o nosso testemunho no mundo não seja sem vida, vem, Espírito Santo, com o teu fogo de graça, reacender a nossa fé, inflamar-nos com esperança, incendiar-nos com caridade.
Vem, divino Consolador, Tu que és a harmonia, para unir os corações e as mentes dos fiéis. Vem e deixa-nos provar a beleza da comunhão.
Vem, Amor do Pai e do Filho, para nos reunir no único rebanho de Cristo.
Mostra-nos os caminhos que devemos seguir, para que, com a tua sabedoria, possamos nos tornar novamente o que somos em Cristo: um, para que o mundo creia. Amém.
Cidade do Vaticano, 23 de novembro de 2025, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.
LEÃO PP. XIV
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[1] L.H. Westra, O Credo dos Apóstolos. Origem, História e Alguns Comentários Antigos, Turnhout 2002(= Instrumenta patrística et mediaevalia, 43).
[2] Primeiro Concílio de Nicéia, Expositio fidei : CC COGD 1, Turnhout2006, 19 6-8 .
[3] Das declarações de Santo Atanásio em Contra os Arianos , I, 9, 2 (ed. Metzler, Athanasius Werke, I/1,2, Berlim - Nova Iorque 1998, 117-118), fica claro que homoousios não significa “de igual substância”, mas “da mesma substância” que o Pai; portanto, não se trata de igualdade de substância, mas de uma identidade de substância entre o Pai e o Filho. A tradução latina de homoousios fala corretamente de unius substantiae cum Patre .
[4] S.Atanásio, Contra os arianos, I, 38, 7 - 39, 1: ed.Metzler, Athanasius Werke, I/1,2, 148-149.
[5] Cf.Id., De incarnatione Verbi , 54, 3: SCh 199, Paris 2000, 458; Contra Arianos , I, 39; 42; 45; II, 59ss.: ed.Metzler, Athanasius Werke, I/1,2, 149; 152, 154-155 e 235ss.
[6] Cf.S. Agostinho, Confissões, I, 1: CCSL 27, Turnhout 1981, 1.
[7] Sto. Tomás de Aquino, In Symbolum Apostolorum , art. 12: ed.Spiazzi, Thomae Aquinatis, Opuscula theologica, II, Torino - Roma 1954, 217.
[8] Cf.S. Basílio, De Spiritu Sancto, 30, 76: SCh 17bis, Paris 2002 2 , 520-522.
[9] Santo Hilário, Contra os Arianos ou Contra Auxêncio, 6: PL 10, 613. Recordando as vozes dos Padres, o erudito teólogo — mais tarde cardeal e agora santo Doutor da Igreja — John Henry Newman (1801-1890) investigou esta disputa e concluiu que o Credo Niceno era salvaguardado sobretudo pelo sensus fidei do Povo de Deus. Cf. Sobre a Consulta aos Fiéis em Matéria de Doutrina (1859).
[10] Primeiro Concílio de Constantinopla, Expositio fidei :CC, COGD1, 57 20-24 . A declaração “e procede do Pai e do Filho (Filioque)” não é encontrada no texto de Constantinopla; foi incorporada ao Credo Latino pelo Papa Bento VIII em 1014 e é objeto de diálogo ortodoxo-católico.
[11] Concílio de Calcedônia, Definitio fidei : CC, COGD 1, 137 393 -138 411 .
[12] Cf.Conc. Écum. Cuba. II, Const. passado Gaudium et spes , 19: AAS 58 (1966), 1039.
[13] Cf. Francisco, Carta Encíclica Laudato si' (24 de maio de 2015), 67; 78; 124: AAS 107 (2015), 873-874; 878; 897.
[14] Cf.Id., Exort. ap. Gaudete et exsultate (19 de março de 2018), 92: AAS 110 (2018), 1136.
[15] Cf.Id., Carta. enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), 67; 254: AAS 112 (2020), 992-993; 1059.
[16] Cf.Conc. Écum. Cuba. II, Dec. Unitatis redintegratio , 1: AAS 57 (1965), 90-91.
[17] Cf. São João Paulo II, Carta enc. Ut unum sint (25 de maio de 1995), 20: AAS 87 (1995), 933.
Fonte - infocatolica

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