sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Seguir Jesus... Assumir riscos calculados

ihu - Seguir Jesus é uma escolha cheia de consequências e de compromissos; é uma escolha crucial e, antes de escolher, precisamos sentar e calcular.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 23º Domingo do Tempo Comum – Ciclo C do Ano Litúrgico (08 de setembro de 2013). A tradução é de André Langer.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: Sb 9,13-18
Segunda leitura: Fm 9b-10.12-17
Evangelho: Lc 14,25-33

Eis o texto.

Há muitas semanas nós nos encontramos a caminho para Jerusalém, e, há três semanas, no caminho, o Jesus do Evangelho de Lucas dá conselhos sobre a maneira de viver na Igreja: estar aberto a todos, acolher os pobres e os necessitados e estar pronto para rupturas, para escolhas dolorosas, para carregar a sua cruz! No fundo, o Evangelho nos coloca a seguinte questão: como fazer caminho com Jesus? Como querer ser seu discípulo sem preferi-lo a tudo, inclusive mais que à sua própria vida? É uma escolha cheia de consequências e de compromissos; é uma escolha crucial e, antes de escolher, precisamos sentar e calcular... De acordo com Lucas, quais são as condições para seguir o Jesus do Evangelho? Há três:

1. Um amor total

Para seguir Jesus, é preciso estar animado por um amor superior a todas as afeições familiares ou quaisquer outras: “Se alguém vem a mim e não dá preferência mais a mim que ao seu pai, à sua mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs, e até mesmo à sua própria vida, esse não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26). Enquanto Mateus se contenta em escrever: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais que a mim não é digno de mim” (Mt 10,37), Lucas utiliza o verbo grego misein, que é traduzido por odiar. O que isto quer dizer? Isto quer dizer que para seguir Jesus é preciso amar verdadeiramente, e isso de uma maneira livre e total. O amor que sentimos pelos parentes, pelos outros e por nós mesmos nunca deve nos impedir de nos conduzir ao Cristo, porque os nossos próximos, os outros e nós mesmos somos imagens do Cristo e mesmo o próprio Cristo. 
Mas, nesse caso, por que Lucas utiliza o verbo odiar, traduzido em nossas Bíblias por preferir? Simplesmente para nos recordar a radicalidade e a urgência do nosso compromisso de amar totalmente, livremente e gratuitamente. Recordemos os três graus do Amor, segundo Santo Agostinho: 1) Amar ser amado: isso diz respeito a todos... Quem não gosta de ser amado? 2) Amar amar: é generoso e virtuoso, mas isso também é ser egoísta; ao querer amar os outros isso nos faz bem, é gratificante e podemos fazer isso exclusivamente por nós mesmos. 3) Amar (simplesmente): gratuitamente, não para se comprazer, mas amar sem esperar nada em troca. É o Amor total, o Amor do Cristo da Páscoa.

2. Carregar sua cruz

Para seguir Jesus é preciso carregar a sua cruz, isto é, renunciar à sua própria vida esperando, às vezes, o pior. Novamente, é um compromisso radical que pode nos levar à rejeição, à condenação e à exclusão, como Jesus em sua ação e sua revolução (sua luta por justiça e liberdade). Ser discípulo de Jesus, comprometer-se a segui-lo, não é agir de maneira politicaly correct, para não desagradar as autoridades e determinadas pessoas. Comprometer-se a seguir Jesus é trabalhar pela justiça e pela liberdade, é partilhar com os mais necessitados, é recuperar a dignidade daquelas e daqueles que a perderam, por causa da sociedade ou da Igreja. Isso requer muita coragem, renúncia e determinação... E é por isso que, antes de fazer essa escolha, antes de assumir tal compromisso, é preciso sentar para calcular se somos capazes de construir uma torre ou apenas assentar os fundamentos (Lc 14,28-30) ou, saindo para guerrear, se temos condições de vencer o adversário (Lc 14,31-32). Uma coisa é certa: não devemos nos esconder atrás dos medos ou das incapacidades; devemos assumir riscos calculados...

3. Renunciar a todos os bens

Para seguir Jesus é preciso ser livre em relação a tudo o que possuímos. Renunciar a todos os bens não quer dizer não ter nada, mas que aquilo que possuímos não nos deve impedir de nos comprometer livremente com o seguimento de Jesus. O teólogo francês Marcel Metzger escreveu em 1992: “No Evangelho deste domingo, não se trata propriamente de renúncias e de medos, porque Jesus se dirige a nós de maneira categórica e radical: ele nos pede para preferi-lo a qualquer outra pessoa e ainda de renunciar a todos os nossos bens, caso quisermos ser seus discípulos. Tais renúncias podem nos parecer muito grandes, até mesmo impossíveis. E, no entanto, se nós não tomarmos a iniciativa espontaneamente e de bom grado, a existência se encarregará disso, no nosso lugar, porque à medida que avançamos na idade, nós nos tornamos progressivamente despojados, senão de riquezas, mas ao menos de saúde, dos parentes, e um dia, da vida. Podemos protestar, nos revoltar, mas nada podemos fazer. Podemos também, ao contrário, fazer desse despojamento irreversível uma caminhada para o Reino, colocar a nossa mão na mão de Jesus, esse companheiro fiel e seguro do qual nada pode nos privar, nem separar (Rm 8,35)”.
Podemos pensar que é impossível nos tornar discípulos de Jesus, podemos pensar que as condições para segui-lo são irrealistas e mesmo utópicas; e, no entanto, já no livro da Sabedoria, que temos na primeira leitura, esse livro escrito 50 anos antes da era cristã, cujo autor, um judeu de Alexandria, influenciado pelo pensamento grego, onde há dualidade entre corpo e alma, nos diz que o homem em sua materialidade é reduzido à impotência; seus sentidos limitam sua percepção ao horizonte terrestre e a Sabedoria que se encontra em Deus está fora do seu alcance: “porque o corpo corruptível torna pesada a alma e a morada terrena oprime a mente que pensa em tantas coisas. Mal podemos conhecer o que há na terra, e a muito custo compreendemos o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, rastreará o que há nos céus?” (Sb 9,15-16). Por outro lado, o Sábio reconhece que Deus mesmo nos deu sua Sabedoria, que é o Espírito Santo, e que nós somos mais que materiais, somos também espirituais; assim, somos salvos e capazes de alcançar a Deus: “Só assim se tornaram retos os caminhos dos que estão sobre a terra, os homens aprenderam o que te agrada e, pela Sabedoria, foram salvos” (Sb 9,18.
Nosso compromisso cristão, hoje, se ele é verdadeiro e autêntico, poderia transformar o nosso mundo, como foi capaz de transformar o mundo ou a sociedade no começo do cristianismo. Na segunda leitura de hoje, temos um dos escritos mais curtos do Novo Testamento, onde Paulo, na sua prisão, acolheu um escravo, Onésimo, que fugiu da casa de seu senhor, Filemon. No contato com Paulo, esse escravo pagão se converteu; ele foi batizado por Paulo e eis que Paulo o reenvia a Filemon, seu senhor, dizendo-lhe para acolhê-lo não mais como escravo, mas como um irmão querido. Imaginem a situação real da época em que o escravo era totalmente desprezado. No tempo de Aristóteles, colocava-se a seguinte questão: “Qual é a diferença entre um escravo e um utensílio? A única diferença é que o escravo se move. O escravo é um instrumento vivo”. Além disso, quando um escravo fugia ou roubava seu senhor, o senhor tinha o direito de vida ou de morte sobre ele. É, pois, uma revolução que o pensamento cristão impõe à sociedade da época: “Se ele te foi retirado por algum tempo, talvez seja para que o tenhas de volta para sempre, já não como escravo, mas, muito mais do que isso, como um irmão querido, muitíssimo querido para mim quanto mais ele o for para ti, tanto como pessoa humana quanto como irmão no Senhor” (Fm 15-16).
Imaginem a grande revolução trazida por Jesus: sempre no sentido da justiça, da igualdade, da dignidade e da liberdade! Hoje, 2013, o que Paulo pediria ao seu amigo Filemon para melhor seguir o Jesus do Evangelho? Ele lhe pediria, sem dúvida, para acolher o drogado, a prostituta, o homossexual, a divorciada, como um irmão, uma irmã, porque em Cristo temos todos e todas a mesma dignidade e somos todas e todos irmãos e irmãs.
Eu termino com esta bela oração do francês Michel Hubaut, que se intitula “Sentar para ousar arriscar”: “Senhor Jesus, para revelar o mistério do Reino de Deus, tu assumiste muitos riscos! Tu arriscaste a eternidade no tempo, tu arriscaste o invisível num rosto de homem, tu arriscaste o divino num corpo humano. Tu arriscaste a Palavra na fragilidade das nossas palavras, tu arriscaste a Bondade de Deus na banalidade dos gestos cotidianos. Tu inclusive te arriscaste a ser mal interpretado e desfigurado. Senhor, desde a tua Encarnação, como te seguir sem assumir riscos? Dá-me o gosto pelo risco e a coragem de tomá-lo com toda a lucidez. Dá-me a coragem de arriscar o meu coração, minha inteligência e minha razão, arriscar meus bens, meu futuro e minha reputação, arriscar a hostilidade, a indiferença e inclusive a cruz. Mas, tantos riscos, tu o compreendes bem, pedem reflexão, tantos riscos merecem que eu tome o tempo para me sentar para acolher, no silêncio da oração, teu Espírito, fonte e força das minhas escolhas, para verificar os fundamentos! Concede-me a graça de construir a minha vida sobre a Rocha da tua Palavra, de permanecer na tua Presença, de começar e terminar a obra da minha vida Contigo”.
xxx 

[ihu]  
Continuando com a reflexão do 23º Domingo do Tempo Comum (8 de setembro de 2013), agora com Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, e tradução de Francisco O. Lara, João Bosco Lara, e José J. Lara. 
Eis o texto.

Uma proposta difícil para se ouvir

Onde a tradução litúrgica nos fala em “não desapegar-se de" ou em preferir (seu pai, sua mãe, etc.), o texto grego usa o verbo “odiar". E isto não foi para atenuar em nós o sentimento de revolta que estas palavras provocam. Revolta que logo se torna uma espécie de ceticismo: o Cristo não poderia nos ter dito para odiar os nossos próximos. A prova disto? Em Mateus 15,6, ele declarou ser vontade divina honrar pai e mãe; em 19,5-6, citando o Gênesis, ele fala da união do homem e da mulher como de um ato do próprio Deus. Então, o que exatamente significa este "odiar", tão contrário ao conjunto dos ensinamentos de Jesus? Seria uma hipérbole ao estilo dos escritos proféticos, como quando, em Mateus 5,29-30, ele fala em arrancar um olho ou em cortar a mão direita? Sim, sem dúvida. Mas a tradução litúrgica não deixa de ter razão quando atenua este "odiar" pelo desapegar-se, ou "preferir", palavra que significa "fazer passar à frente". Mesmo sendo um pouco menos escandaloso, ainda assim é duro de se ouvir: como em Mateus 10,37, onde o Cristo fala em "amar mais". Para começar a compreender, é preciso que nos lembremos de que esta passagem se situa no relato da caminhada para Jerusalém, para a crucifixão. Jesus vai ter aí de renunciar a tudo, vai aceitar perder tudo. Irá "preferir"-nos a tudo o que a criação poderia lhe oferecer; irá fazer com que nós passemos à frente de sua própria vida. O "vir a ele" do início da leitura não nos encaminha para um ponto de chegada: no versículo 27, este "vir a ele" torna-se "caminhar no seu seguimento".

Para além dos frágeis apoios das nossas seguranças

Pai, mãe, esposo, esposa, filhos, filhas, irmãos, irmãs; todo o ambiente natural, as nossas raízes, tudo o que temos nesta vida para nos situar, nos identificar e reconhecer; tudo o que nos traz, ou que pode nos trazer, tranqüilidade e segurança. Jesus mantém esta mesma linguagem com respeito às riquezas. Notemos os possessivos: "seu" pai, "sua" mãe, "sua" mulher... Podemos perguntar se Jesus não nos convida simplesmente a que renunciemos às nossas atitudes possessivas, ligadas justamente à nossa obsessão com uma segurança que se assenta, não no Amor que nos faz existir, mas sim naquilo que possuímos. Como diz Paulo em 1 Coríntios 7,29-31, trata-se de possuir como se não possuíssemos. No fundo, vamos encontrar a experiência dos pais de Jesus, em Lucas 2,29-35, quando Simeão os destituiu de alguma forma da posse de seu filho, para destiná-lo a ser "a luz das nações e a glória de Israel". O cenário é o mesmo de Lucas 2,41-50, quando vemos Jesus lhes escapar para ir dedicar-se aos assuntos de seu Pai. O que não o impede, contudo, de voltar com eles para Nazaré, permanecendo-lhes submisso; em suma, sem pertencer a eles, leva, no entanto, com eles uma vida normal, numa relação verdadeira, mas despossuída. É inútil tentar adquirir tais atitudes por meio de esforços da vontade: há um caminho apenas para se chegar até aí: olhar para o Cristo e escolher segui-lo ou, mais exatamente: viver o que a vida nos traz e as privações, por vezes cruéis, que ela nos impõe, fazendo nossas as atitudes do Cristo.

Do amor para o amor; da vida para a vida

Preferir o Cristo a todos os nossos próximos ganha um sentido novo, de fato, quando se compreende que esta preferência consiste em fazer nossa a sua escolha: dar a sua vida "por seus amigos", por estes que ele ama. Segundo um paradoxo que é freqüente nos evangelhos, renunciando ao que chamamos de "amor" é que alcançamos o amor autêntico. Nunca amamos tanto os que nos são próximos como quando colocamos o Cristo acima de tudo. Notemos bem, acima da nossa própria vida. Assim como alcançamos o verdadeiro amor aos nossos próximos renunciando a um amor possessivo, somos também convidados a nos libertar de certo modo de conceber a vida para alcançarmos a vida verdadeira, a que supera a morte. A mesma morte para a qual caminha o Cristo, "dando a sua vida": é dando a própria vida que ela é salva. Somos, enfim, convocados a preferir o Cristo a tudo e a todos, para encontrá-lo e amá-lo em todos, a começar pelos nossos próximos. Nosso amor encontrará, então, a sua verdade, impregnando-se de respeito, deste "temor de Deus" de que falam as Escrituras. Caminhar em seguimento ao Cristo nos obriga a deixar as seguranças do que "já está aí", do que é bem conhecido, que não nos reserva mais surpresas e que dominamos, este ambiente humano que acreditamos possuir, mas que pode nos aprisionar. Abrindo-nos ao futuro do Cristo, libertamos também os nossos próximos para que também eles possam acolher Aquele que vem.

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