Terça, 16 Julho 2013
Por José Miguel Arraiz
INTRODUÇÃO
Recentemente
recebi em meu Blog alguns comentários acerca de um artigo meu, "Sábado e
Domingo na Igreja Primitiva", da parte de alguns leitores adventistas.
Referidos comentários vinham acompanhados de algumas citações
patrísticas de Santo Agostinho de Hipona, nos quais supostamente
defenderia a observância do sábado e não a do domingo, de modo a tentar
sustentar a hipótese que é refutada pelo artigo principal, a saber: que
foi Constantino o responsável pela alteração do dia do Senhor, do sábado
para o domingo, e que nos tempos de Santo Agostinho os cristãos,
todavia, ainda guardavam o sábado.
Eis algumas dessas citações:
- "Se
amais a Deus, dedicarás o sábado a Ele, para descansar (...) Senhor,
nosso Deus: dai-nos a paz do sábado, com a sua manhã e tarde" (Agostinho de Hipona).
- "É
dito [por Deus] que guardeis o sábado. Vos converteis em adversários
Dele quando não fazeis o que eu vos mando fazer; e eu sou vosso
adversário se não digo o que Ele manda dizer: que guardeis o sábado" (Santo Agostinho de Hipona, "Obras Completas").
A VERDADE
Uma
das primeiras coisas que chama a atenção é a maneira incorreta de citar
essas passagens. Não se apontam as obras de que foram extraídas, nem
muito menos de que parte em específico. Se pedirmos a eles que citem
apropriadamente, costuma ser comum que nos respondam como um desses
comentaristas: que as referidas citações "encontram-se em documentos
históricos dos primeiros séculos e que são fáceis de serem encontradas".
Porém, por experiência, sei que em 99% das vezes o que ocorre é que a
pessoa apenas retira a citação de algum site protestante, sem tomar o
devido cuidado de verificá-las, de modo que é muito provável que sejam
espúrias ou citadas fora do contexto. Uma referência ambígua como esta é
sempre útil para as suas finalidades, já que a maioria das pessoas que
lerão tampouco se darão ao trabalho de verificar sua autenticidade e as
poucas pessoas que tentarão fazê-lo se afogarão em uma quantidade não
pequena de livros.
Pois
bem: o argumento em si mesmo é irrelevante, porque no artigo que
tentavam refutar encontram-se testemunhos datados de séculos antes de
Santo Agostinho, que demonstram não só que os primeiros cristãos não
guardavam o sábado, como também que para eles o Dia do Senhor era o
domingo; isso sem contar que o próprio São Paulo, no Novo Testamento,
manda "que ninguém vos critique por questões de comida ou bebida, ou em
razão de festas, novilúnios ou sábados" (Colossenses)... porém, mesmo
assim, quero compartilhar alguns textos onde é possível observar no seu
devido contexto o pensamento de Santo Agostinho sobre o Dia do Senhor e
quanto a observância do sábado. Santo Agostinho explica que o sábado foi
ordenado para os judeus, porém, para os cristãos, o domingo é o Dia do
Senhor:
"Ao
contrário, não nos é mandado observar ao pé da letra o dia de sábado,
no que se refere à suspensão da atividade corporal, como os judeus
observam; observância literal que é tida por ridícula, a não ser que
signifique também descanso espiritual. Entendemos, portanto, com razão,
que todas essas coisas que nas Sagradas Escrituras nos são ditas
figuradamente valem para inflamar o amor que temos ao repouso, visto que
no Decálogo nos é proposto figuradamente apenas o preceito do descanso,
que é amado em todas as partes e somente em Deus se encontra com
certeza e santidade. O domingo foi preceituado não aos judeus, mas aos
cristãos, em razão da ressurreição do Senhor; e desde esse momento
ganhou solenidade, porque as almas de todos os santos descansam
realmente antes da ressurreição dos corpos, porém não têm aquela
atividade que vitaliza os corpos que lhes foram consignados. Essa
atividade é o que significa o oitavo dia, que se confunde com o
primeiro, já que não suspende mas glorifica esse descanso (...) Os
santos patriarcas, cheios do espírito profético antes da ressurreição do
Senhor, conheceram também esse sacramento do oitavo dia, que significa a
ressurreição (...) Mas quando ocorreu a ressurreição no corpo do
Senhor, para que antecedesse na Cabeça da Igreja o que o Corpo da mesma
espera apenas para o final, já era possível começar a celebrar o oitavo
dia, que é idêntico ao primeiro, isto é, o domingo" (Santo
Agostinho, Carta 55: resposta às perguntas de Jenaro 13,23; Obras
Completas de Santo Agostinho, Tomo 8. Madri: Biblioteca de Autores
Cristãos, 1986, pp. 368-369).
Além
desta explicação, em "De Utilitate Credenci" enumera entre os preceitos
e mandamentos legais, que já não é lícito aos cristãos guardar a
observância do sábado:
"Porém,
todos estes preceitos e ordens legais, que já não é lícito aos cristãos
observar, tais como a circuncisão, o sábado, os sacrifícios e outros
idênticos, contêm mistérios tão imensos, que não há pessoa piedosa que
desconheça os males que se seguem ao tomar em sentido literal do que ali
é exposto, nem os ótimos frutos que resultam se são entendido tal e
qual são revelados ao espírito. Por isso, diz São Paulo: 'A letra mata,
porém o espírito dá vida'; e naquela outra passagem: 'O mesmo véu
continua sobre a lição da Antiga Aliança, sem perceber que apenas por
Cristo foi removido'. Não é que Cristo remova o Antigo Testamento, mas
que o revela, para que por intermédio de Cristo se torne intelegível e
patente o que sem Ele permaneceria nas trevas e fechado" (Santo
Agostinho, De Utilitate Credenci 3,9; Obras Completas de Santo
Agostinho, Tomo 4. Madri: Biblioteca de Autores Cristãos, 1956, p. 843).
Também explica que, ainda que os judeus creiam que continuem obrigados a guardar os sábados, os cristãos não creem assim:
"Quando
falou ao povo hebreu acerca da guarda do sábado, tampouco mencionou os
alimentos que deveriam ou não comer. Apenas prescreveu a abstenção dos
trabalhos servis. O povo hebreu aceitou esse preceito - que era um
símbolo do descanso futuro -, e se absteve de trabalhar. Todavia, vemos
que os judeus se abstêm de trabalhar no sábado, ainda que os judeus
carnais não entendam o que os cristãos retamente entendem. Naquele
tempo, quando isso era o que convinha, os profetas guardaram o repouso
sabático, que os judeus ainda creem que deva ser observado"
(Santo Agostinho, Carta 36: a Casulano 3,5; Obras Completas de Santo
Agostinho, Tomo 8. Madri: Biblioteca de Autores Cristãos, 1986, p. 207).
Santo Agostinho explica que, antes que o véu fosse retirado, o sábado era uma sombra figurativa:
"Não
obstante - advertência que julgo suficiente para o assunto que ora nos
ocupa - não foi inutilmente preceituado ao povo judeu o abster-se,
naquele dia (=sábado), de todo trabalho servil, que significa o pecado,
porque o não pecar é efeito da santificação, isto é, do dom de Deus
mediante o Espírito Santo; por isso, apenas este preceito, entre todos
os outros, foi colocado na Lei, gravado nas tábuas de pedra, como sombra
figurativa que os judeus observavam como santificação do sábado,
significando com isso que aquele era o tempo em que a graça deveria
permanecer oculta; mas pela Paixão de Cristo, com o rasgo do véu do
Templo, foi revelada, pois é dito que o véu seria retirado quando Cristo
houvesse chegado" (Santo Agostinho, Do Espírito e da Letra
15,27; Obras Completas de Santo Agostinho, Tomo 6. Madri: Biblioteca de
Autores Cristãos, 1956, p. 733).
"Eis
aqui o porquê, dentre os Dez Mandamentos, apenas nesse, que se refere
ao sábado, se manda observar figuradamente. Essa figura nos é proposta
para que a compreendamos, não para que a celebremos com o descanso
corporal" (Santo Agostinho, Carta 55: resposta às perguntas de
Jenaro 12,22; Obras Completas de Santo Agostinho, Tomo 8. Madri:
Biblioteca de Autores Cristãos, 1986, p. 367).
Em
outro texto, fala de como o sábado e a circuncisão são observâncias
pertencentes à antiga e dura servidão da Lei carnal, diferentemente das
leis morais que permanecem:
"O
que são, portanto, os preceitos de Deus, escritos por Ele mesmo nos
corações, senão a própria presença do Espírito Santo, que é o Dedo de
Deus, por cuja presença é derramada em nossos corações a caridade, que é
a plenitude da Lei e a finalidade do preceito? Porque, acerca do Antigo
Terreno, são terrenas as promessas que nele se fazem, ainda que, com
exceção dos sacramentos que eram figuras do futuro - como a circuncisão,
o sábado, certas observâncias anexas a determinadas solenidades, as
cerimônias usadas em certas refeições, e muitos ritos referentes aos
sacrifícios e ao culto, que convinha assim à antiga e dura servidão
daquela Lei carnal - continham neles os mesmos preceitos que agora nos é
mandado observar, especialmente os que se encontram assinalados
naquelas tábuas sem qualquer sombra figurativa, como estes: não
cometerás adultério, não matarás, não cobiçarás, ou qualquer outro
preceito que possa ser recapitulado" (Santo Agostinho, Do
Espírito e da Letra 21,36; Obras Completas de Santo Agostinho, Tomo 6.
Madri: Biblioteca de Autores Cristãos, 1956, p. 747).
Daí que se exclui das leis morais a observância do sábado:
"Pois
dentre estes Dez Mandamentos, excetua-se [apenas] a observância do
sábado. Quero que me digam qual deles não ser cumprido pelos cristãos:
não fabricar ou adorar ídolos ou outros deuses, salvo o único Deus
verdadeiro; não tomar o nome de Deus em vão; honrar os pais; evitar a
fornicação, o homicídio, o furto, o falso testemunho, o adultério e a
cobiça dos bens alheios. Quem ousará dizer que o cristão não deve
observar todos estes preceitos?" (Santo Agostinho, Do Espírito e
da Letra 14,23; Obras Completas de Santo Agostinho, Tomo 6. Madri:
Biblioteca de Autores Cristãos, 1956, p. 727).
Em
outros textos, cita como exemplo o fato de os Apóstolos terem recolhido
espigas no sábado (conforme a vontade de Jesus) como uma forma de
ensinar que a observância do sábado após alterados os tempos (já não
estando sob a Lei, mas sob a graça) era mera superstição:
"Porém,
segundo lemos, os discípulos de Cristo não apenas comeram nesse sábado,
como também colheram as espigas [nesse mesmo dia], o que era ilícito,
já que proibido pela tradição dos antigos. Portanto, quanto a isso,
iremos responder oportunamente, dizendo que o Senhor queria que os seus
discípulos fizessem nesse dia ambas as coisas: que colhessem as espigas e
que se alimentassem; o primeiro, contra aqueles que querem repousar no
sábado e, o segundo, contra aqueles que querem obrigar a jejuar no
sábado. O Senhor deu assim a entender que o primeiro caso é de
superstição, já que mudados os tempos; e que o segundo é livre em
qualquer época" (Santo Agostinho, Carta 36: a Casulano 3,6; Obras
Completas de Santo Agostinho, Tomo 8. Madri: Biblioteca de Autores
Cristãos, 1986, p. 208).
Assim, os cristãos devem entender o mandamento do sábado como uma certa promulgação do descanso e repouso do coração:
"Terceiro
Mandamento: Lembra-te de santificar o dia de sábado. Neste terceiro
mandamento, insinua-se uma certa promulgação do descanso, repouso do
coração, tranquilidade da mente, que opera a boa consciência"
(Santo Agostinho, Sermão 8: as Dez Pragas e os Dez Mandamentos 6; Obras
Completas de Santo Agostinho, Tomo 7. Madri: Biblioteca de Autores
Cristãos, 1981, p. 125).
Santo Agostinho explica que o Domingo é mais santo que o Sábado
Na
mesma carta a Casulano, Santo Agostinho afirma que o domingo é mais
santo que o sábado porque no sábado o corpo do Senhor descansou no
sepulcro enquanto que no domingo ressuscitou dentre os mortos (ver Carta a Casulano 5,12; 7,14).
Santo Agostinho pregava todos os Domingos na Celebração Eucarística
"Ouvia-o,
é verdade, pregar retamente ao povo a Palavra da Verdade todos os
domingos, fazendo-me ver mais e mais que poderiam ser resolvidas todas
as maliciosas calúnias que aqueles que nos enganavam levantavam contra
os Livros Sagrados" (Santo Agostinho, Confissões 6,3,4; Obras
Completas de Santo Agostinho, Tomo 2. Madri: Biblioteca de Autores
Cristãos, 1979, p. 234).
Também
observa que há igrejas que celebram a Eucaristia todos os dias; outras,
aos sábados e domingos; e outras, apenas aos domingos:
"Há
outras práticas que variam segundo os diversos lugares e nações. Assim,
por exemplo, alguns jejuam no sábado, outros não; alguns comungam todos
os dias o Corpo e Sangue do Senhor, outros comungam apenas em
determinados dias; alguns não deixam passar sequer um dia sem celebrar,
outros celebram apenas nos sábados e nos domigos, outros ainda só nos
domingos. Em tudo isto, a melhor disciplina para o cristão convicto e
prudente é acomodar-se ao modo que é observado pela igreja em que por
acaso se encontre" (Santo Agostinho, Carta 54: a Jenaro 2,2;
Obras Completas de Santo Agostinho, Tomo 8. Madri: Biblioteca de Autores
Cristãos, 1986, p. 338).
Inclusive,
para Santo Agostinho é inconcebível que um judeu convertido ao
Cristianismo continue guardando o sábado ou outras leis como a
circuncisão etc.:
"Volto
a dizer: já que sois bispo e mestre nas igrejas de Cristo, podes fazer
provar que é verdade o que dizes: toma um judeu que se fez cristão,
porém que ainda circuncise o filho que lhe nasceu, que guarde o sábado,
que se abstém dos alimentos que Deus criou para que usemos deles em ação
de graças, que mate um cordeiro ao anoitecer do 14º dia do primeiro mês
(=Nisan). Quando fizerdes isto (melhor dizendo, não o farás, porque sei
que sois cristão e não cometerás tal sacrilégio), queiras ou não,
reprovarás a tua sentença" (Santo Agostinho, Carta 75: Jerônimo a
Agostinho 4,15; Obras Completas de Santo Agostinho, Tomo 8. Madri:
Biblioteca de Autores Cristãos, 1986, p. 466).
CONCLUSÃO
O
fato de os Adventistas pretenderem usar algumas citações patrísticas de
Santo Agostinho para defender a sua tese [sabática], coloca em
evidência duas coisas:
1)
Ignorância ou desonestidade intelectual: se for por ignorância, porque
desconhecem estes outros textos de Santo Agostinho, pecam por
negligência ao escrever sobre uma matéria sobre a qual não efetuaram as
pesquisas necessárias; porém, se conhecem e omitem estes textos,
demonstram desonestidade intelectual ao apresentarem uma informação
deturpada, apenas para favorecer suas próprias doutrinas humanas.
2) Hipocrisia: ao pretenderem empregar textos patrísticos quando lhes convêm, e não empregar quando não lhes são favoráveis.
FONTE:
ARRAIZ, José Miguel. Santo Agostinho e a
Observância do Sábado. Disponível em:
. Desde 21/05/2013 Tradução: Carlos Martins Nabeto
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