terça-feira, 3 de dezembro de 2019

“Dois papas” e a necessidade universal de tolerância

[unisinos]
Por Rose Pacatte


Dias após sua histórica eleição no dia 13 de março de 2013, o cardeal Jorge Mario Bergoglio, agora Papa Francisco, tenta reservar uma passagem para Lampedusa para visitar os refugiados lá, mas a agente de viagens deliga o telefone na sua cara porque acha que ele está fingindo ser o papa.
O comentário é da irmã paulina estadunidense Rose Pacatte, doutora em Comunicação Pastoral e fundadora do Pauline Center for Media Studies, em Los Angeles. O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 28-11-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O filme “Dois papas”, então, recua até 2005, até a eleição do antecessor de Francisco, o cardeal Joseph Ratzinger (Anthony Hopkins), após a morte do longo reinado do agora canonizado Papa João Paulo II. É uma eleição contestada, e Ratzinger obviamente quer o cargo. Ele fica abertamente preocupado quando o cardeal de Milão, Carlo Maria Martini, e Bergoglio (Jonathan Pryce), de Buenos Aires, Argentina, recebem um apoio significativo na primeira votação. Ratzinger não tenta esconder seu desdém pelo jesuíta amante da teologia da libertação e que vem da América Latina quando eles passam um pelo outro, mesmo depois de ele ser eleito e assumir o nome de Bento XVI.
Agora, nove anos depois, Bergoglio, 75 anos, acaba de comprar uma passagem de avião para ir a Roma e oferecer sua renúncia obrigatória a Bento, quando uma convocação sobreposta o chama para Roma. Bento está em sua residência de verão, Castel Gandolfo, e Bergoglio é obrigado a esperar para ver o papa. Enquanto espera, ele faz amizade com o jardineiro. Bento percebe e não foca impressionado.
Enquanto os dois homens caminham juntos, Bento faz alguns comentários e algumas perguntas. Ele parece hostil e crítico, e Bergoglio está confuso com o motivo de ter sido convocado. Ele tenta entregar a sua carta de renúncia, mas Bento se recusa a aceitá-la.
Enquanto caminham de volta para dentro de casa, Bento diz a Bergoglio: “Não concordo com tudo o que você pensa, diz e faz. Mas eu acho que chegou a sua hora, Bergoglio”. Eles passam algum tempo juntos naquela que parece ser uma sala de estar papal. Bento encoraja Bergoglio a assistir as notícias sobre o seu time de futebol favorito e depois toca piano brevemente. Bergoglio lembra a influência da sua avó, a sua juventude, a sua história vocacional, a sua decisão de não se casar e de se tornar um padre jesuíta.
Bento é chamado a Roma na manhã seguinte para responder a uma crise, e os dois pegam um helicóptero rumo ao Vaticano. Lá, durante aquilo que parece ser um dia ou dois, eles continuam suas conversas. Bento lembra Bergoglio dos seus anos como provincial da comunidade jesuíta quando dois de seus companheiros jesuítas, o Pe. Orlando Yorio e o Pe. Franz Jalics (Lisandro Fiks), foram sequestrados pelas autoridades navais da ditadura durante a “Guerra Suja” de 1976. Bergoglio conta o seu lado da história com flashbacks do seu exílio para uma paróquia de montanha em Córdoba depois. É óbvio que Bergoglio sente responsabilidade e tristeza, apesar de ser inocente de cumplicidade no sequestro e na tortura dos padres e de ter ajudado muitos argentinos a escapar durante esses anos. Ele se ajoelha, e Bento dá a absolvição.
Na manhã seguinte, Bento pede para se encontrar com Bergoglio na Capela Sistina antes de ela ser aberta ao público. Agora é a vez de Bento mencionar o seu papel na Igreja e no papado, e a sua luta para ouvir a voz de Deus. Ele não parece mais adversativo em relação a Bergoglio. Enquanto olham para o teto, eles conversam sobre a mão de Deus em suas vidas. Bergoglio, que descobriu uma pizzaria perto do Vaticano, sugere que eles peçam algo para comer. Eles compartilham uma pizza e parecem quase amigáveis, esquecendo-se de suas preocupações por um instante. Depois, conversam sobre o escândalo do abuso clerical na “Sala das Lágrimas”, onde os papas recém-eleitos se vestem antes de se encontrarem com a multidão na Praça de São Pedro. Bento admite os fardos da situação, começando pelas proteções vaticanas a um dos maiores abusadores, que também tinha amantes e filhos, o Pe. Marcial Maciel. Agora, o penitente é Bento.
É claro que nenhum deles quer continuar em seus papéis. Bento conta a Bergoglio que pretende renunciar ao papado, que existe um precedente, e Bergoglio o exorta apaixonadamente a não fazer isso, por todos os tipos de razões. Ele também suspeita que Bento o vê como um possível sucessor.
Embora o filme comece com uma frase que diz que a história se baseia em fatos reais, o filme é uma série de encontros ricamente imaginados entre o Papa Bento XVI e o Papa Francisco, baseado no livro do autor neozelandês Anthony McCarten, que também escreveu o roteiro do filme. Ele coreografa as suas conversas em locações vaticanas, especialmente a Capela Sistina, que foi criada quase perfeitamente à escala (exceto pelo teto que foi acrescentado por imagens geradas por computador).
Eu tive a oportunidade de visitar o set perto do fim das filmagens, em maio de 2018 (junto com meu colega do NCR, o correspondente vaticano Joshua McElwee). Nós caminhamos dentro da “Capela Sistina” nos estúdios do Cinecittà Studios, nos arredores de Roma. Almoçamos com o diretor, Fernando Meirelles, e nos encontramos com Jonathan Pryce enquanto visitávamos os sets. É sempre muito educativo fazer uma visita aos estúdios durante a produção de um filme. Você passa a apreciar todo o trabalho que envolve o cinema, além de aprofundar sua compreensão de como a mídia é construída, peça por peça, momento a momento, imagem por imagem. Vimos a grande sala de costura (e conhecemos alguns dos alfaiates), onde os figurinos de muitos cardeais eram projetados e confeccionados com precisão. As muitas meias (e sapatos!) vermelhas e outros itens de vestuário foram doados para campos de refugiados na Itália após as filmagens.
Se McCarten está interessado nos escândalos de abuso clerical, as imagens das populosas favelas da América Latina e a agitação civil na Argentina refletem a sensibilidade do diretor brasileiro Meirelles, que dirigiu o corajoso “Cidade de Deus”. A música desempenha um papel significativo no filme: temos Abba e o tango com Bergoglio, e uma música clássica e mais datada para Bento.
As performances são excepcionais e dignas de prêmios. Hopkins como Bento, o papa que parecemos conhecer menos, é muito bom em externalizar dimensões que só podem ser imaginadas em um papa que ousou renunciar. Francisco e Bento são opostos e oponentes formidáveis. Observar os dois papas retratados por Pryce e Hopkins enquanto assistem à partida de futebol de 2014 entre Alemanha e Argentina não tem preço. O humor faz bem para a alma e para um filme sobre, entre todas as coisas, dois papas que vivem ao mesmo tempo dentro do mesmo quilômetro quadrado. E mantém a audiência fixada. Depois de uma exibição no American Film Institute (AFI) em Hollywood, Ben Cahlamer, crítico de cinema que compareceu à recepção como eu, disse a respeito do filme que “os céus se abriram, e eles riram conosco”. Um padre na mesma sessão me disse que “foi tudo muito divertido”.
Eu conheci uma mulher na recepção que me mostrou o pequeno escapulário que ela usa e disse: “Este filme me fez querer dedicar mais tempo à minha vida espiritual”. Outra mulher disse que não se importa muito em ir à confissão ou à sua paróquia onde o padre a conhece, mas ver os papas se confessarem um com o outro a ajudou a entender melhor o sacramento e o perdão.
O cineasta vencedor do Oscar Chris Donahue me disse por que ele está dizendo às pessoas que se trata de uma comédia. “O importante do filme não é que seja um tratado teológico, mas sim a história de esperança e de uma amizade improvável.” Donahue vê o filme como uma “Divina Comédia” moderna, em que cada papa experimenta o inferno, o purgatório e, finalmente, o paraíso.
Pessoalmente, eu usarei este filme para os nossos retiros de “Cinema Divina” [paráfrase de Lectio Divina]. Eu também acho que ele pode estar presente nos programas de Iniciação Cristã de Adultos, porque, embora seja ficção, o filme lida com a história da Igreja, o papado, os mistérios da fé e oferece muito o que conversar a esse respeito. Ele também tem algo a dizer sobre o nível antagônico do discurso público nos EUA.
Junto com a minha colega e irmã paulina Nancy Usselmann, eu também tive a oportunidade de entrevistar McCarten, que escreveu o filme “The Pope" de 2017 e o livro de 2019 “The Pope: Francis, Benedict and the Decision that Shook the World” [O papa: Francisco, Bento e a decisão que sacudiu o mundo]. Ele comentou sobre quantos “prêmios da audiência” o filme está ganhando em festivais de cinema e disse que não quer exagerar, mas acha que isso se deve ao fato de o filme abordar “uma necessidade universal de tolerância, de escuta recíproca, de entendimento, de compromisso, de comunhão”.
McCarten estava em Roma com sua esposa, Eva, em 2013, quando visitaram a Basílica de São Pedro para acender uma vela por um amigo. Mas a praça estava cheia de pessoas para uma missa celebrada por Francisco. Ele se perguntou onde Bento estaria naquele momento e como era ter dois papas. O que o fez renunciar? “Eu não sabia a resposta, então pesquisamos no Google e percebemos que o Papa Celestino I renunciou em 1294. Dante o incluiu na ‘Divina Comédia’ (concluída em 1320) e o colocou no fundo do inferno, chamando-o de ‘o grande recusador’.”
McCarten continuou: “Eu comecei a me perguntar por que Bento renunciou. Foi um evento cataclísmico e provocou um enigma eclesiástico: o que você faz com dois papas ao mesmo tempo? Eu sempre começo a partir de um estado de ignorância curiosa. Eu escrevo o que quero conhecer”.
Ele falou sobre a cena em que os dois homens, que haviam cansado um ao outro em discussão, sentam-se em silêncio como irmãos e simplesmente não dizem nada. “O silêncio”, disse McCarten, “permite a tolerância, a compreensão.”
“Dois papas” pode ser considerado muito “verborrágico” ou “religioso” e até pedante, exceto pelas brincadeiras humorísticas que quebram a gravidade dos seus encontros. Bento, o filósofo, é equilibrado por Francisco, o pastor. Toda a narrativa se caracteriza pela justaposição dos dois homens em sua diversidade, tanto quanto se trata de uma história de unidade que se desdobra nas imagens e sons de 2.000 anos de história. Ela apresenta um ciclo dinâmico de perspectivas à medida que um dos dois homens cresce para entender a experiência, a espiritualidade e a teologia do outro. Eles precisam ampliar suas visões de mundo hemisféricas e eclesiais do Norte e do Sul, enquanto discutem em frente ao altar em uma capela de 500 anos de idade incrivelmente bonita. O diálogo e a esperança na humanidade e na Igreja são exibidos para um público do século XXI de maneiras inesperadas. Bento detém o controle como papa, mas a confiança de Bergoglio ao responder ao homem mais velho está enraizada na humildade.
Em uma entrevista recente com o diretor Meirelles, eu perguntei por que ele decidiu dirigir o filme. Ele explicou: “Quando eles me convidaram para fazer um filme sobre o Papa Francisco, eu aceitei porque sou um grande fã da sua política, e ele é uma pessoa da América do Sul como eu”.
“A imagem original que eu tinha era a de um papa bom versus um papa mau, seguindo o modo como a imprensa os descrevia. Depois, eu assisti a algumas das homilias de Bento e o entendi. Comecei a ver áreas cinzentas no modo como Bento era descrito e interpretado.”
Meirelles explicou que o filme é sobre “aprender a ouvir os outros, a perdoar. Esses são os temas que eu gosto no filme. É uma história pessoal sobre o Papa Francisco e sua agenda: sua crítica a esse sistema econômico injusto e ao modo como estamos consumindo o planeta”.
Embora a maior parte do diálogo seja em inglês – com falas em latim e um pouco de alemão –, Meirelles explicou que os dois aprenderam italiano para o filme, e Pryce aprendeu espanhol para as cenas na Argentina. No entanto, eles tiveram que ser dublados por um ator argentino, porque os argentinos esperariam que Bergoglio falasse espanhol com o sotaque adequado. Mas é Pryce quem fala em italiano, porque Francisco também fala italiano com sotaque.
Quanto àquilo que ele espera que as pessoas levem do filme, Meirelles disse: “A ideia de tolerância é a moral da história. Eu espero que as pessoas realmente se relacionem com essa ideia da escuta e da tolerância, porque isso nos dá a esperança de que não temos que continuar lutando um contra o outro para sempre. O filme tem um certo calor, porque mostra que é possível se conectar com o outro”.
Há uma cena no fim do filme, depois dos créditos, que está aberta à interpretação, por isso não deixe de assisti-la. Meirelles diz que é o lugar onde Deus o chamou. Eu acho que pode ser sobre Francisco, desejando uma vida mais simples e mais contemplativa; ou talvez seja a sua nostalgia, ou sobre o fato de seguir em frente, e não se entregar a arrependimentos. Ou talvez seja sobre o passado sendo o prólogo: a sua persistência em seguir o chamado de Deus em uma fé aperfeiçoada no deserto, no topo da montanha acidentada da vida, quando o caminho cheio de rochas é tudo, menos suave e certo.

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