Por Padre Nuno Serras Pereira
Não
é propriamente uma originalidade dos dias que correm a invocação da
Misericórdia infinita de Deus para desculpabilizar a gravidade do pecado
mortal e as suas consequências no destino eterno da pessoa humana. Já
Orígenes, de resto um excelente teólogo, admitia uma restauração final
em que os condenados ao Inferno e o próprio diabo seriam resgatados e
salvos. Em meados do século vinte Giovanni Pappini, no seu livro O
Diabo, caiu no mesmo engodo. A Igreja sempre condenou essa teoria,
porque não concorde com a Sagrada Escritura nem com a Tradição,
reafirmando a eternidade da condenação ao Inferno. A existência deste e a
sua eternidade são aliás um Dogma de Fé, isto é, uma verdade Revelada
por Deus.
Um
outro grande e cultíssimo teólogo contemporâneo, em dois dos seus
últimos livros, não advogando embora a apocatástases (restauração final
dos condenados, do diabo e demais demônios) defende que o cristão não só
pode como deve esperar que todos os homens se possam salvar. Esperar,
não significa ter a certeza. Para ele significa que cada um deve viver
com tal radicalidade, generosidade e empenho a sua Fé de modo a que
“completando na sua carne o que falta à paixão de Cristo” carregue com
os pecados dos outros passando, de algum modo, a Graça que lhe é dada
para eles, de modo a que se possam converter.
Chega
a interpretar o sofrimento dos místicos, as suas noites escuras, e o
sofrimento dos inocentes como uma participação na Paixão de Cristo capaz
de transformar a liberdade inquinada ou ímpia dos outros em liberdade
de tender para Deus. Afinal, como diz a Escritura “Deus quer que todos
os homens se salvem”. Adverte, no entanto, que cada um deve, como exorta
S. Paulo, “trabalhar com temor e tremor” na sua própria salvação, não a
dando, de modo nenhum, como adquirida. O inferno não terá sido criado
directamente por Deus mas produzido pela liberdade da criatura
(angélica) que ao rebelar-se definitivamente contra Ele, se fechou ao
Seu amor ou ao Amor que Ele é: “Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos” (Mateus 25, 41).
Uma
vez que não existirá nenhum pronunciamento solene explícito do
Magistério da Igreja declarando, segundo este teólogo, a existência de
qualquer ser humano no Inferno podemos e devemos esperar, segundo ele,
que todos se possam salvar. A verdade, porém, é que também não há
nenhuma declaração do Magistério da Igreja afirmando que o Inferno está
vazio de pessoas humanas.
A
vulgarização desta hipótese ou especulação teológica acabou por gerar
naqueles poucos que ainda aderiam à verdade Revelada da existência do
Inferno a convicção de que ninguém lá estaria nem se poderia condenar.
Daí se passou à desculpabilização sistemática de toda e qualquer pessoa,
por maiores que fossem as enormidades que ela cometesse.
Grandes
teólogos reagiram, entre eles o eminente (Cardeal) Avery Dulles, a
muitas das afirmações deste autor. Reconhecendo embora os seus méritos, e
muita da doutrina exposta, contestam a necessidade de um pronunciamento
solene e explícito do Magistério sobre o assunto e mostram como
asserções da Sagrada Escritura, da Tradição e de documentos do
Magistério seriam incompreensíveis sem a admissão da eterna perdição
efectiva, não só de pessoas angélicas (demônios) mas também de pessoas
humanas.
É
verdade, como dizia o então Cardeal Ratzinger, que a Fé nos foi dada
não para que nos salvemos e os outros se percam, mas para que através da
nossa Fé os outros também se possam salvar. No entanto, também não é
menos verdade, como dizia numa outra obra, que Deus criou-nos livres e
leva a nossa liberdade a sério.
Estou
em crer que a Misericórdia de Deus não deve ser invocada em vão, nem
para aquietar as consciências dos que procederam mal infundindo-lhes uma
falsa esperança de que se podem salvar permanecendo, embora, nos seus
pecados porque afinal a última palavra caberá à Misericórdia Divina, que
tudo ignorará. Não! A Misericórdia, como nos ensina a parábola do filho
pródigo, deve ser invocada para chamar as pessoas ao arrependimento e
há conversão, enquanto é tempo, e o tempo é breve. “Morte certa. Hora
incerta. Juízo particular. Inferno ou Céu para sempre”. Afinal é isso
mesmo que nos diz a Carta de S. Tiago: “Haverá Juízo sem misericórdia
para aquele que não usou de misericórdia” (2, 13).
Evidentemente
que não usa de misericórdia, ou seja, não é misericordioso, todo aquele
que pratica, é cúmplice, coopera formalmente ou é indiferente em
relação aquelas monstruosidades legisladas e promulgadas a que me referi
no texto de ontem.
Que
ninguém duvide: cada um será julgado segundo as suas obras. (Obras
praticadas pelo amor, gerado pela Fé que nos foi dada, sem mérito algum
da nossa parte. A graça precede sempre, acompanha e guia a vontade.) Por
isso podemos ler no Evangelho as palavras severas de Jesus, na parábola
do Juízo final, “retirai-vos de Mim, malditos! … para o fogo eterno…”
(Mateus, 25, 41).
E
S. Paulo adianta: “… (C)om a tua dureza e o teu coração impenitente,
estás a acumular ira sobre ti, para o dia da cólera e do justo
julgamento de Deus, que retribuirá a cada um conforme as suas obras:
para aqueles que, ao perseverarem na prática do bem, procuram a glória, a
honra e a incorruptibilidade, será a vida eterna; para aqueles que, por
rebeldia, são indóceis à verdade e dóceis à injustiça, será ira e
indignação. Tribulação e angústia para todo o ser humano que pratica o
mal … Glória, honra e paz para todo aquele que pratica o bem…” (Romanos
2, 5-10).
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