Jesus morreu por todas as pessoas. Para os cristãos, isso estabelece uma relação qualitativamente diferente da que o Islã tem com todas as pessoas, independentemente de sua fé e visão de mundo.
Nota do editor: O artigo a seguir é um trecho de um discurso proferido pelo Bispo Marian Eleganti no Fórum da Vida em Roma, em 4 de dezembro de 2025.
Em 25 de janeiro de 1986, o Papa João Paulo II anunciou o primeiro Dia Mundial de Oração pela Paz multirreligioso, que ocorreu em 27 de outubro do mesmo ano. O evento contou com a presença de 150 representantes de diversos grupos religiosos, incluindo o Dalai Lama Tenzin Gyatso, representantes do budismo tibetano, hinduísmo e sikhismo, Inamullah Khan do Congresso Mundial Islâmico e o Rabino Chefe de Roma, Elio Toaff, entre outros.
Seguiram-se outras reuniões com diferentes ênfases: em 1993, 2002, 2011 e 2016.
Quanto aos encontros inter-religiosos em Assis, desde o início houve preocupações por parte dos funcionários da cúria e dos bispos. Questionavam se este encontro de líderes religiosos não católicos e não cristãos não estaria perigosamente próximo da “heresia do sincretismo”. [1] Acima de tudo, não estariam estes encontros, ipso facto, colocando todas as tradições religiosas no mesmo nível? “Como poderia o papa rezar com homens e mulheres que adoravam um Deus diferente ou muitos deuses?” [2] Na verdade, este encontro foi uma ideia de João Paulo II.
Como explicou o Cardeal Etchegaray, o papa estava convencido de que as tradições religiosas do mundo tinham o potencial de trazer paz aos conflitos internacionais. [3] Neste ponto, surge imediatamente a questão de saber se o oposto não é também verdadeiro. Consideremos hoje a extensão da perseguição aos cristãos, especialmente nos países muçulmanos, mas também por parte do hinduísmo nacionalista, para citar apenas dois exemplos. A intenção era que cada representante da sua religião rezasse à sua maneira e no seu próprio lugar, e só depois se reunissem, porque “João Paulo deixou claro que isto não poderia significar uma oração comum universal, porque isso teria sido verdadeiro sincretismo e, portanto, impossível – não só para si próprio, mas também para os outros”. [4] O jejum também deveria ser observado, e o Papa João Paulo escolheu Assis como local para poder viajar até lá como peregrino.
Com relação ao Quarto Encontro de Assis das Religiões Mundiais, o Papa Bento XVI expressou sua opinião em uma carta datada de 4 de março de 2011, ao pastor luterano Peter Beyerhaus: “Em qualquer caso, farei todo o possível para garantir que uma interpretação sincrética ou relativista do evento seja impossível e que permaneça claro que continuo a acreditar e a professar o que lembrei à Igreja em minha carta 'Dominus Jesus'.” [5]
Provavelmente, era exatamente isso que o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé temia na época do primeiro encontro, e esses temores claramente não se dissiparam ao longo dos anos. O poder das imagens, que eram menos sutis do que os esclarecimentos teológicos de Ratzinger, não deve ser subestimado. O então prefeito da Assinatura Apostólica, Cardeal Raymond Leo Burke, escreveu em 2011 sobre o poder das imagens:
Existem vários perigos que tal encontro poderia acarretar em termos da comunicação do evento pelos meios de comunicação de massa, dos quais – como é evidente – o pontífice está bem ciente. Os meios de comunicação de massa dirão, mesmo apenas com as imagens, que todas as religiões se uniram para pedir a Deus pela paz. Um cristão mal formado poderia tirar disso a conclusão gravemente errônea de que uma religião é tão boa quanto a outra e que Jesus Cristo é um dos muitos mediadores da salvação. [6]
Tal como no Concílio Vaticano II, mutatis mutandis, o chamado “Espírito de Assis” (cf. Enzo Bianchi; Andrea Riccardi; Cardeal Etchegaray; o Patriarca de Constantinopla) ofereceu uma legitimação muito invocada, mas extremamente vaga e indiferenciada, das tendências relativistas na Igreja, que o “Dominus Jesus” procurou, em última análise, combater. Em todo o caso, o Cardeal Ratzinger não compareceu ao primeiro encontro, e as suas reservas aumentaram em vez de diminuírem ao longo dos anos. Para ele, as religiões não são símbolos intercambiáveis do único Deus invisível que está por trás de tudo, a quem todos nós, fundamentalmente, nos referimos, e não somos todos filhos de Deus simplesmente por pertencermos à raça humana por natureza. A este respeito, Francisco foi muito mais longe do que os seus antecessores. Discutiremos isto em detalhe mais adiante.
Uma coisa é certa: o mandamento do Senhor de pregar o Evangelho a todas as nações e fazer delas seus discípulos (Mt 28:18-20; Mc 16:15-19; Lc 24:46-49; Jo 20:21; At 1:8) continua sendo ignorado em muitos lugares, e isso já dura décadas. Muitas pessoas reconhecem a legitimidade da ajuda ao desenvolvimento, mas não a necessidade da missão cristã, que rejeitam categoricamente.
O individualismo religioso e o pluralismo multicultural, que são ipso facto relativistas, criaram uma atmosfera social caracterizada por uma grande aversão e animosidade em relação às reivindicações de verdade. A crença de que todas as religiões são apenas caminhos diferentes para o mesmo objetivo é generalizada. Não deveria mais existir nenhuma religião que afirme possuir a verdade (supostamente "alugada").
Infelizmente, as declarações do Papa Francisco no Colégio Católico Júnior de Singapura, em 13 de setembro de 2024, seguem nessa direção e, com todo o respeito ao Papa, são objetivamente escandalosas. Cito:
Uma das coisas que mais me impressionou em vocês, jovens, em vocês aqui presentes, é a capacidade de diálogo inter-religioso. E isso é muito importante, porque quando vocês começam a discutir: 'Minha religião é mais importante que a sua…', 'A minha é verdadeira, a sua não é verdadeira…', aonde isso leva? Aonde…? [Alguém responde: 'À destruição']. Isso mesmo. Todas as religiões são um caminho para Deus. Elas são – vou fazer uma comparação – como diferentes línguas, diferentes expressões idiomáticas, para chegar lá. Mas Deus é Deus para todos. E porque Deus é Deus para todos, somos todos filhos de Deus. 'Mas o meu Deus é mais importante que o seu!' É verdade? Só existe um Deus, e nós, com as nossas religiões, somos línguas, caminhos para Deus. Alguns são sikhs, alguns são muçulmanos, alguns são hindus, alguns são cristãos, mas são caminhos diferentes. Entendido? [7]
Essa é uma visão à qual já me opus na década de 1990, em um seminário sobre teologia religiosa pluralista em Salzburgo.
O pluralismo religioso opõe-se a qualquer "ideologia" que deva ser "imposta" a todas as pessoas – mais uma vez, uma suposição – como a "única válida" ou a "única salvífica". Aceita-se uma atitude que ajude as pessoas, mas que não busque "convertê-las". A "missão" surge aqui como uma forma de presunção e orgulho.
Uma das principais pensadoras da teologia feminista, Rosemary R. Ruether, classificou a concepção universalista do cristianismo, que exige uma “missão” para difundir as “boas novas”, como puro “imperialismo”. Teólogos cristãos também colocam Cristo em pé de igualdade com outros mediadores da salvação (cf. a “Cristologia” do presbítero americano John Hicks). A reivindicação de Jesus à absolutidade é “um problema central” para a teologia deles [8] e, em sua visão, requer uma nova avaliação no contexto de outras visões da realidade divina, as chamadas intuições de Deus. Perry Schmidt-Leukel também é um defensor desse conceito.
A afirmação de Jesus sobre a absolutidade, que fundamenta a Grande Comissão ou a ideia missionária, torna-se, portanto, mais uma vez um grande obstáculo: “Mas nós pregamos a Cristo crucificado: escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus” (1 Coríntios 1:23). Por essa razão, nas últimas décadas, o conceito de missão foi substituído pela ideia de parceria e diálogo (entre religiões), que carrega menos “conotações negativas”, ou por “aprendizagem intercultural”. É evidente que hoje compreendemos erroneamente a tolerância como uma renúncia a convicções e reivindicações de verdade.
Consequentemente, “missão” pode significar qualquer coisa (compromisso com o clima ou com a migração sem barreiras e sem fronteiras), exceto convencer alguém da verdade – em nosso contexto, de Jesus Cristo. Essa também parece ter sido a visão do Papa Francisco.
No entanto, o “diálogo”, como epítome de um credo relativista, que desde o início e em princípio não concede a nenhum interlocutor a possibilidade de uma compreensão mais profunda da verdade do que o outro, torna precisamente esse diálogo supérfluo e sem sentido. Sócrates diz no Fédon (91, ac): “Só é belo estar convencido de algo se também for verdade!” [10] Sim, surge a questão: Pode-se sequer aderir a uma religião cuja verdade (aliás, excelência) não se está verdadeiramente convencido (porque, do contrário, teria de a abandonar honestamente ou mudá-la)?
O diálogo e a proclamação estão, naturalmente, inter-relacionados e, nesse sentido, não são propriamente alternativas (cf. Documento do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso de 19 de maio de 1991). O diálogo inclui o testemunho da fé, enquanto a proclamação pressupõe o diálogo. Mas a obra da convicção é realizada somente por Deus. Dele provém a demonstração do espírito e do poder que não necessita de persuasão. “A minha pregação e o meu anúncio não consistiram em palavras persuasivas e sábias, mas na demonstração do Espírito e do poder, para que a vossa fé não se baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus” (1 Cor 2,4).
Isso é justo e agradável a Deus, nosso Salvador, que deseja que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus, que se entregou em resgate por todos. Este testemunho foi dado agora, no tempo devido. E eu fui designado pregador e apóstolo — digo a verdade, não minto — e mestre dos gentios na fé e na verdade. (1 Timóteo 2:3-7)
A partir daí, surgiu para mim a questão do que Francisco entendia por proselitismo, que ele repetidamente e decisivamente rejeitou, uma polêmica que, na minha opinião, equivalia a uma rejeição da missão. Será que ele entendia missão como a propagação de um reino de paz multicultural, tolerante e dialógico, onde todos os opostos e contradições coexistam com fronteiras abertas e a desejável justiça social? Uma espécie de reino de Deus interior, de fraternidade universal, sem questionamentos perturbadores da verdade e, portanto, sem a mediação explícita de Jesus Cristo, no máximo como exemplo moral?
Nem todas as religiões querem dizer a mesma coisa quando falam de Deus ou acreditam tê-lo experimentado! E também não acredito que todas sigam na mesma direção. Nem estou convencido de que as principais religiões do mundo sejam apenas variações da autocomunicação de Deus.
Quando os Padres da Igreja falaram das sementes da verdade que também existem entre os pagãos, eles não se referiam primordialmente às suas religiões, mas sobretudo à sua filosofia (grega) altamente desenvolvida. Pense em filósofos antigos como Platão e Aristóteles, ou em mestres da sabedoria asiáticos como Confúcio.
Contudo, os Padres da Igreja consideravam as religiões pagãs como sendo de inspiração demoníaca. Sua visão sobre isso se baseia nas Sagradas Escrituras: 1 Coríntios 10:20: “O que os pagãos sacrificam, sacrificam a demônios e não a Deus.” 1 Coríntios 10:20. “Todos os deuses dos pagãos são demônios.” Salmo 95(96):5. A partir disso, muitos Padres deduziram que por trás dos cultos aos ídolos não havia apenas erro humano, mas um poder espiritual que obscurecia o verdadeiro Deus. Tomás de Aquino (século XIII) ensina que existem vestígios de verdade nas religiões pagãs (por exemplo, o conhecimento natural de Deus), mas que estes foram corrompidos ou pervertidos por influências demoníacas e erro humano. Suma Teológica, II-II, q.94, a.4: “Os demônios fizeram com que as pessoas adorassem criaturas como se fossem divinas.”
A relativização da pessoa de Jesus Cristo promovida na teologia religiosa pluralista e a consequente nova concepção de uma teologia das religiões baseiam-se na exclusão a priori da possibilidade de Deus se encarnar de maneira única, irrepetível e duradoura na história, podendo, assim, revelar-se de forma universalmente vinculativa e compreensível. A “revelação”, no sentido teológico, não deve, portanto, ser dissolvida em um vago “misticismo” de natureza religiosa universal. Conclui-se que as expressões da consciência religiosa a esse respeito não podem ser indiscriminadamente atribuídas à atuação onipresente do Espírito de Deus em um contexto inter-religioso. Não é possível que em Jesus Cristo o mesmo Deus tenha testemunhado sobre Seu Filho amado (cf. Mt 3:17, 17:5; Mc 1:11, 9:7, 12:6; Lc 3:22; 2 Pe 1:17) e alguns séculos depois, através de Maomé, supostamente o selo dos profetas, tenha proclamado que Deus não tem filho (!), como a polêmica anticristã e antitrinitária do Alcorão quer fazer crer.
De uma perspectiva intercultural, o Evangelho é o sal da terra e a luz do mundo. Ele revela algo que não pode ser visto de outra forma. Nesse sentido, é também uma crítica à religião. Como demonstra a conversa de Jesus com a mulher samaritana junto ao poço de Jacó, afirmações de validade sem concessões (“A salvação vem dos judeus”; “o verdadeiro templo está em Jerusalém”, cf. João 4:22-23) podem coexistir com a capacidade de diálogo e o respeito por outras formas de pensar. Essa conversa mostra, com toda a cautela necessária, como levar a outra pessoa a uma compreensão mais profunda de que importa com quem ou com qual fé se está lidando ao confrontar uma afirmação religiosa: “Se vocês soubessem qual era o dom de Deus e quem estava lhes pedindo água, vocês lhe teriam pedido, e ele lhes teria dado água viva.” (João 4:10)
Em comparação com essa constatação, Paulo então renunciou a tudo: “Considero tudo como perda, porque o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, supera tudo. Por causa dele, renunciei a tudo e considero tudo como lixo, para ganhar a Cristo” (Filipenses 3:8). Inevitavelmente, nos lembramos da parábola de Jesus: “O Reino dos céus é como um tesouro escondido num campo. Um homem o encontrou e o escondeu de novo. Então, cheio de alegria, vendeu tudo o que tinha e comprou aquele campo” (Mateus 13:44). O Evangelho de João vê no conhecimento de Cristo a vida eterna por excelência: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (João 17:3). Mas como alguém pode conhecê-lo se ninguém o anuncia, pergunta retórica do apóstolo (cf. Romanos 10:14)?
A passagem da Declaração de Abu Dhabi que se refere a uma pluralidade de religiões dada por Deus atraiu consideráveis críticas. Ela afirma: “O pluralismo e a diversidade em religião, cor, gênero, etnia e idioma são uma sábia vontade divina com a qual Deus criou os seres humanos.”
Se aplicarmos essa frase ao Islã, fica imediatamente claro o quão equivocada ela é. Pois o Islã é, por sua própria admissão, uma religião anticristã. Cristianismo e Islã não podem coexistir, não apenas em termos de teoria da verdade, mas também na prática. Isso fica evidente no fato de que o Islã sempre perseguiu e oprimiu o Cristianismo onde quer que ele prevaleça, levando-o ao desaparecimento. A maioria dos mártires cristãos hoje morre pelas mãos de muçulmanos. A frase prossegue: “Além disso, declaramos – com convicção – que as religiões jamais incitam a guerra e não convocam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo, violência ou derramamento de sangue. Essas catástrofes são resultado do desvio dos ensinamentos religiosos e da exploração política das religiões.” Isso nada mais é do que uma distorção da história e uma cegueira para a realidade, senão um engano deliberado.
Será que todas as religiões ensinam a não-violência da mesma forma que o Evangelho? O verdadeiro problema do Islã, num contexto inter-religioso, não reside precisamente na sua relação com a violência? A afirmação de que “as religiões nunca incitam à guerra, despertam sentimentos de ódio, hostilidade ou extremismo, nem apelam à violência ou ao derramamento de sangue” é flagrantemente falsa. Contradiz, em particular, os documentos fundadores e a história do Islã (o Alcorão e os Hadiths), que apelam explicitamente à violência e sempre a utilizaram. Em todo o caso, a ideia de considerar todos os seres humanos, incluindo cristãos, judeus e infiéis (kuffãr), como irmãos é completamente estranha ao Islã.
É duvidoso que a Declaração de Abu Dhabi possa reinterpretar a autoimagem do Islã, que divide o mundo em uma casa de paz (Dãr al-Islãm), onde o Islã reina, e uma casa de guerra (Dãr al Harb), onde isso não ocorre. Os cristãos, por outro lado, internalizaram a parábola do Bom Samaritano, com base na qual enxergam seu próximo em cada estrangeiro. Isso é absolutamente normativo e imperativo para eles, e é também uma das razões pelas quais o cristianismo, como nenhuma outra religião, contribuiu para a humanização do mundo. O próprio Cristo, nas parábolas do Bom Samaritano (Lucas 10:25-37) e do julgamento das nações pelo Filho do Homem (Mateus 25:31-46), demonstrou solidariedade com todo ser humano que, em princípio e sempre, pode se tornar meu próximo.
Jesus morreu por todas as pessoas. Para os cristãos, isso estabelece uma relação qualitativamente diferente da que o Islã tem com todas as pessoas, independentemente de sua fé e visão de mundo. A caridade cristã chega ao ponto de acolher os inimigos (inclusão). Tal ideia, por exemplo, amar até mesmo os chamados "inimigos" ou "oponentes" do Islã, parece completamente irracional e incompreensível para o Islã. O que uma explicação de uma autoridade que não é normativa para todos os muçulmanos e para o Islã como um todo pode mudar sobre isso? Por que o ensinamento de Jesus de amar a todos, que deve ser implicitamente considerado a fonte da ideia de humanidade universal (fraternidade) entre todos os povos, não é mencionado nominalmente na Declaração de Abu Dhabi? Afinal, Jesus também é considerado um profeta no Islã, sem que, paradoxalmente, seus ensinamentos e sua autoimagem sejam verdadeiramente adotados.
Somente os muçulmanos são verdadeiros irmãos (de fé) dos muçulmanos praticantes. Eles formam a uma (comunidade de fé). No Islã, pessoas de outras religiões e não crentes são, por si só, cidadãos de segunda classe (seres humanos), porque, na visão de mundo islâmica, os seres humanos foram criados como muçulmanos (sendo o Islã a religião original de Adão e Abraão) e, segundo a crença muçulmana, judeus e cristãos distorceram a verdadeira fé ao longo da história. Caso contrário, teriam permanecido muçulmanos. Isso estabelece uma desigualdade fundamental entre eles e os muçulmanos devotos, desigualdade que o documento de Abu Dhabi não eliminará, nem, creio eu, o Fratelli tutti (2020).
De uma perspectiva cristã, a mediação única e universal de Jesus Cristo fica obscurecida na Declaração de Abu Dhabi devido à dupla assinatura. Isso é surpreendente do ponto de vista cristão. Como sempre, a nova fraternidade surge à custa da mediação universal de Jesus Cristo: Sua reivindicação da verdade e Sua mediação devem ficar em segundo plano. Este é o pré-requisito para a declaração. Caso contrário, o grande imã provavelmente não a teria assinado. Seria mais honesto falar de caridade em vez de fraternidade, que no cristianismo se baseia na fé em Cristo, no batismo ou renascimento pelo Espírito e pela água, e não na vontade do homem, ou seja, não em fundamentos naturais.
A Declaração de Abu Dhabi propaga um conceito secular de "Reino de Deus" que não se baseia na fé cristã (renascimento pelo Espírito e pela água), mas sim numa fraternidade que é estranha ao Islã, embora nutrida por raízes cristãs. Seria melhor lembrar aos muçulmanos os direitos humanos, que ainda estão sujeitos à lei da Sharia e, portanto, não podem ser universalizados dessa forma. O grande imã teria feito melhor se tivesse assinado a Declaração de Abu Dhabi sobre os direitos humanos universais sem reservas.
A fraternidade da Declaração de Abu Dhabi é apresentada como um âmbito humano e político naturalista e universal de tolerância mútua. Tais conceitos humanitários, essencialmente políticos, de paz têm sido proclamados repetidamente ao longo da história e frequentemente implementados de maneira revolucionária, ou seja, violenta. Na realidade, são formados a partir de fragmentos da fé cristã ou do Evangelho. Até o momento, todas essas tentativas fracassaram e não alcançaram o que prometeram e almejaram. Isso porque não converteram o coração humano à verdade sobre Deus e o homem, ou a Jesus Cristo, mas seguiram teorias humanas que foram refutadas por sua própria história revolucionária, ao custo de atos de violência em escala sem precedentes e milhões de mortes (cf. O Livro Negro do Comunismo).
O único que é Deus e que pode verdadeiramente renovar o coração humano por dentro é Jesus Cristo e o Seu Evangelho.
Ironicamente, na história de Soloviev de mesmo nome, o Anticristo, que tudo perdoa, promete um reino de paz igualitário, relativista e ecumênico, no qual nenhum dos participantes do diálogo precisa sacrificar minimamente suas próprias convicções em nome da verdade absoluta, mas sim ouvir do Anticristo exatamente o que querem ouvir e no que já acreditam.
A Declaração de Abu Dhabi declara que todas as pessoas são filhos de Deus porque pertencem à humanidade, enquanto o Evangelho de João vincula a filiação divina à fé em Cristo e ao batismo (renascimento do Espírito e da água; não pela vontade do homem). Isso também se aplica ao conceito de fraternidade universal (Fratelli tutti, 3 de outubro de 2020).
O cardeal Américo Aguiar, que coordenou a última Jornada Mundial da Juventude (2023) como bispo auxiliar de Lisboa, causou polêmica com sua declaração: “Não queremos converter os jovens a Cristo, à Igreja Católica ou algo do gênero”. Ele afirmou que a “mensagem principal” deste evento foi: “Penso de forma diferente, sinto de forma diferente, organizo minha vida de forma diferente, mas somos irmãos e irmãs, e construiremos o futuro juntos”.
Aguiar relaciona acertadamente essa visão à encíclica social programática do Papa Francisco, Fratelli Tutti (2020). Em prol da indispensável mediação de Jesus Cristo, não devemos falar de fraternidade universal, mas de caridade no sentido da parábola do Bom Samaritano: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14:6).
Segundo a Grande Comissão de Jesus, devemos fazer de todas as pessoas Seus discípulos. Uma Igreja Católica que renuncia a isso deixa de ser católica. Mais uma vez: como seres humanos, não somos filhos de Deus desde o nascimento, mas Suas criaturas. Devemos primeiro aceitar e afirmar nossa filiação. Ela nos é oferecida em Cristo. Nossa fé é a resposta adequada a essa oferta e a condição para sermos admitidos a essa filiação em Jesus Cristo. Cristo nos dá o poder de nos tornarmos filhos de Deus: se crermos Nele e formos batizados! Qualquer pessoa que queira incluir a todos e não excluir ninguém, ao preço de relegar Cristo, o Filho de Deus e a verdade universal, a salvação das nações, o mediador e a porta exclusiva para Deus, a um segundo plano ou colocá-Lo em pé de igualdade com outras opções, não merece o nome de “cristão”.
A verdadeira luz que ilumina todo ser humano veio ao mundo. Ele estava no mundo, e o mundo foi feito por intermédio dEle, mas o mundo não O reconheceu. Veio para o que era seu, / mas os seus não O receberam. Mas a todos quantos O receberam, / deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, / a todos quantos creem no Seu nome, os quais não nasceram do sangue, / nem da vontade da carne, / nem da vontade do homem, / mas de Deus. E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a Sua glória, glória como a do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade (João 1:9-14).
Esta é a base da nossa irmandade, nada mais.
Fonte - lifesitenews
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