24/01/2013
A vocação é um dom concedido liberalmente
por Deus. E, por vezes, compraz-se o Senhor em chamar alguém
aparentemente contrário à missão para a qual Ele o destina, a fim de
manifestar com maior fulgor o poder de Sua Graça e a gratuidade do Seu
chamado. Nesses casos, apesar dos aparentes paradoxos e à revelia do
próprio interessado, cujas aspirações parecem entrar em choque com os
desígnios Divinos, o Senhor vai preparando os caminhos, servindo-Se até
dos próprios obstáculos para fazer cumprir sua Santa Vontade.
Jovem fariseu de Tarso
Nada parecia indicar que aquele
jovenzinho de rosto vivo e inteligente, de nome Saulo, viesse a
transformar-se num intrépido defensor de Jesus Cristo. Nascido em Tarso,
na Cilícia, no seio de uma família judaica, o pequeno Saulo esteve,
desde muito cedo, sujeito a duas fortes influências que pesariam
grandemente na formação de seu caráter.
De um lado, as convicções religiosas que
aprendera de seus pais não tardaram em fazer dele um autêntico fariseu,
apegado às tradições, anelante pela chegada de um Messias vitorioso e
libertador do povo eleito, então submetido ao jugo estrangeiro, e zeloso
cumpridor da Lei até em suas mínimas prescrições.
De outro lado, o ambiente de sua cidade
natal marcou profundamente a personalidade do jovem fariseu. Tarso -
metrópole grega, súdita do Império Romano - tornarase, por sua
localização privilegiada, um dos centros de comércio mais importantes
daquele tempo. Regurgitava de gente, proveniente das nações mais
diversas, cujas línguas e costumes misturavam-se sob o fator
preponderante da cultura helênica. A Providência começava a preparar o
jovem fariseu para sua futura missão de Apóstolo das Gentes.
Discípulo de Gamaliel
Apenas saído da adolescência, Saulo
abandonou sua pátria para instalar-se na cidade-berço da religião de
seus antepassados: Jerusalém. Ali tornou-se assíduo estudioso das
Escrituras, instruído pelo douto Gamaliel, um dos mais destacados
membros do Sinédrio. Também aqui podemos notar a mão de Deus intervindo
em sua vida, pois o conhecimento dos Livros Sagrados, que adquiriu ao
longo desses anos, servir-lhe-ia mais tarde para abrir seus horizontes a
respeito da realidade messiânica de Jesus Cristo.
Entretanto, se Saulo progredia a passos
rápidos nas doutrinas farisaicas, sob o olhar vigilante de Gamaliel, em
nada pareceu assimilar a prudência que caracterizava seu mestre, sempre
cauto em seus juízos e comedido nas apreciações. Pelo contrário, o jovem
aluno dava mostras de um exaltado fanatismo religioso, como ele mesmo
confessaria em sua epístola aos Gálatas: "Avantajava-me no judaísmo a
muitos dos meus companheiros de idade e nação, extremamente zeloso das
tradições de meus pais" (Gl 1, 14).
No interior do discípulo de Gamaliel
latejava um coração sincero, à procura da verdade. Buscava-a
ardorosamente, desejoso de alcançar o pleno conhecimento dela. Não sabia
que o termo desses seus anseios encontravase nAquele que, de Si mesmo,
dissera: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai senão
por Mim" (Jo 14, 6).
Sim, Saulo não poderia chegar ao Pai,
Suprema Verdade, sem passar por Jesus, o Mediador entre Deus e os
homens. A afirmação proferida pelo Divino Mestre, momentos antes de Sua
Paixão, ele a veria cumprir-se em sua vida, ainda que contra a sua
vontade e apesar de suas relutâncias. E a ocasião se haveria de
apresentar justamente quando as convicções de Saulo, chocadas ante o
Cristianismo que surgia, haviam-se convertido em ódio profundo contra
este.
Encontro de Saulo com o Cristianismo
Saulo passara alguns anos fora de
Jerusalém, que coincidiram com o período da vida pública de Jesus.
Quando voltou, verificou uma grande mudança. A Cidade Santa não era a
mesma que ele conhecera em seus tempos de estudante: após a tragédia da
Paixão, pesava sobre a consciência do povo e, sobretudo, das autoridades
a figura ensangüentada da Vítima do Gólgota, que eles em vão procuravam
lançar no esquecimento. E mais: os discípulos daquele Homem não temiam
pregar sua doutrina no próprio Templo, proclamando que esse Jesus a quem
haviam matado ressuscitara dos mortos (cf. At 3, 11ss.).
Tais acontecimentos não podiam deixar
indiferente um fariseu convicto como Saulo. Não compreendia que aqueles
simples galileus se levantassem impunemente contra a religião de seus
antepassados, arrastando atrás de si tamanha multidão de seguidores. Sua
irritação chegou ao auge quando, estando na sinagoga chamada dos
Libertos, onde semanalmente se reuniam judeus de todas as comunidades da
Diáspora, deparou- se com um jovem chamado Estêvão, que anunciava
denodadamente as glórias do Crucificado.
O jovem Saulo sentia-se incomodado: as palavras de Estêvão eram tão inspiradas e convincentes, que não se lhe podia resistir
"Martírio de Santo Estêvão" - Juan de Juanes
- Museu do Prado, Madri |
Momentos mais tarde, tendo sido
apresentado Estêvão ao tribunal do Grande Conselho, Saulo escutou
atentamente o longo discurso no qual este demonstrou, por meio de
exemplos históricos e de profecias, ser Jesus o Messias esperado. O
jovem fariseu sentia-se incomodado: as palavras de Estêvão eram tão
inspiradas e convincentes, que não se lhe podia resistir (Cf. At 6, 10);
de outro lado, a imagem desse Jesus Nazareno, que ele não conhecera,
parecia perseguilo, e constantemente via-se obrigado a ouvir falar a
respeito, de tal modo os seus adeptos se espalhavam por Jerusalém. Duro
lhe era recalcitrar contra o aguilhão (cf. At 26, 14). E, entretanto,
Saulo recalcitrava!
Indignado diante da coragem de Estêvão,
aprovou entusiasticamente sua morte (cf. At 8, 1) e considerou como uma
honra a missão de custodiar os mantos dos apedrejadores, uma vez que sua
idade não lhe permitia levantar a mão contra o condenado.
Surge o perseguidor dos cristãos
A partir daquele dia, o exaltado
discípulo de Gamaliel não pôs mais freio à sua fúria. Acreditando "que
devia fazer a maior oposição ao nome de Jesus de Nazaré" (At 26, 9),
entrava nas casas dos fiéis e arrancava delas homens e mulheres para
entregálos à prisão (cf. At 8, 3); chegava a maltratá-los para
obrigá-los a blasfemar (cf. At 26, 11). Não contente com devastar apenas
a Igreja de Jerusalém, foi apresentar-se ao príncipe dos sacerdotes,
pedindo-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, com o fim de prender,
nessa cidade, todos os que se proclamassem seguidores da nova doutrina
(cf. At 9, 2).
Mas, esse Jesus a quem ele teimava em
perseguir (At 9, 5), viria a atravessar- Se de novo em seu caminho,
desta vez de modo definitivo e eficaz.
No caminho de Damasco
Podemos imaginar a ânsia do jovem Saulo
ao aproximar-se de Damasco, antegozando a hora de saciar sua cólera no
cumprimento da missão que se propunha. Mas eis que, subitamente, uma luz
fulgurante vinda do Céu envolveu-o e a seus companheiros, derrubando-o
do cavalo. Ali, caído por terra e cegado pelo resplendor dos raios
divinos, o orgulhoso fariseu não pôde mais resistir ao poder de Cristo e
declarou-se vencido: "Senhor, que queres que eu faça?" (At 9, 6).
De perseguidor que era, poucos instantes
antes, passava a servo fiel, pronto para obedecer aos mandatos do Divino
Perseguido. Quanta glória para o Crucificado! Por um simples toque de
Sua graça, transformara em Seu Apóstolo um dos mais ferventes discípulos
daqueles que haviam sido seus principais contendores, durante sua vida
pública.
Ajudado por seus companheiros, Saulo
ergueu-se do chão. Entretanto, mais do que levantar-se do solo, surgiu
em sua alma "o homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira
justiça e santidade" (Ef 4, 24). O blasfemador de outrora permaneceria
para sempre prostrado num amoroso reconhecimento de sua derrota: "Jesus
Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, dos quais sou eu o
primeiro. Se encontrei misericórdia, foi para que em mim primeiro Jesus
Cristo manifestasse toda a sua magnanimidade e eu servisse de exemplo
para todos os que, a seguir, nEle crerem, para a vida eterna" (I Tm 1,
15-16).
Saulo converte-se em Paulo
Com a mesma radicalidade com que outrora
se apegara ao judaísmo, Saulo abraçava agora a Igreja de Cristo. A graça
respeitara a natureza, conservando as características próprias de sua
personalidade que viriam mais tarde a contribuir na formação da escola
paulina de vida espiritual. A partir desse momento, o Saulo convertido, o
novo Paulo, só se moveria por um único ideal, que tomava todas as
fímbrias de sua alma e dava verdadeiro sentido à sua existência: "Quanto
a mim, não pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso
Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu
para o mundo" (Gl 6, 14).
Doravante essa Cruz - na qual Paulo não
apenas considerava os sofrimentos do Salvador, mas via, sobretudo, os
esplendores da Ressurreição - seria para ele o rumo de sua vida, a luz
dos seus passos, a fortaleza de sua virtude, o seu único motivo de
glória. Esse amor, que num instante operara a sua transformação, o
impelia agora a falar, a pregar, a percorrer os confins do mundo a fim
de conquistar almas para Cristo, arrancando-lhe, do fundo do coração,
este gemido: "Ai de mim se eu não evangelizar!" (I Cor 9, 16).
O orgulhoso fariseu não pôde mais resistir ao poder de Cristo e declarou-se vencido: "Senhor, que queres que eu faça?" "A conversão de São Paulo", por Murilo - Museu do Prado, Madri |
Por esse amor estava disposto a enfrentar
todas as tribulações, a suportar os piores tormentos, fossem de ordem
natural, como também os de ordem moral: "Muitas vezes vi a morte de
perto. Cinco vezes recebi dos judeus os quarenta açoites, menos um. Três
vezes fui flagelado com varas. Uma vez apedrejado. Três vezes
naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo. Viagens sem conta,
exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte de
meus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade,
perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos!
Trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, freqüentes
jejuns, frio e nudez! Além de outras coisas, a minha preocupação
cotidiana, a solicitude por todas as igrejas!" (II Cor 11, 23-28).
Ele havia se proposto, antes de tudo, à
glorificação de Jesus Cristo e da Sua Igreja, e isto constituía para ele
o suco essencial, o norte de sua vida. A este respeito comenta São João
Crisóstomo: "Cada dia ele subia mais alto e se tornava mais ardente,
cada dia lutava com energia sempre nova contra os perigos que o
ameaçavam. [...] Realmente, no meio das insídias dos inimigos,
conquistava contínuas vitórias, triunfando de todos os seus assaltos. E
em toda parte, flagelado, coberto de injúrias e maldições, como se
desfilasse num cortejo triunfal, erguendo numerosos troféus, gloriava-se
e dava graças a Deus, dizendo: ‘Graças sejam dadas a Deus que nos fez
sempre triunfar' (II Cor 2, 14)."
Apóstolo das Gentes
Assim, pouco a pouco, por meio de suas
viagens apostólicas e das numerosas cartas através das quais sustentava
na Fé seus filhos espirituais, Paulo ia assentando os fundamentos da
Esposa Mística de Cristo. Nem mesmo internamente havia de lhe faltar
adversários: por vezes, entre os próprios cristãos, surgiam conceitos
errôneos, como o de querer obrigar os pagãos convertidos a praticar os
costumes da Lei Mosaica. A esse respeito Paulo levou sua ousadia até o
ponto de discutir com o próprio Apóstolo Pedro, "resistindo-lhe
francamente, porque era censurável" (Gl 2, 11).
Pedro aceitou com humildade o ponto de
vista de Paulo e apressou-se em colocá-lo em prática. Mas os cristãos
que haviam espalhado suas idéias pelas igrejas da Galácia não o
imitaram, acrescentando ainda que a justificação provinha estritamente
do cumprimento da Lei. Nada poderia ser tão nocivo para a Igreja
nascente do que tais enganos, e Paulo logo o percebeu. Decidiu deixar
por escrito toda a doutrina sobre esse ponto, e o fez com tanta
segurança e clareza que deduz-se têla recebido dos lábios do próprio
Jesus.
Assim, a epístola dirigida aos Gálatas é
um escrito polêmico, sem receios de apresentar a verdade tal como ela é:
"Ó insensatos gálatas! Quem vos fascinou a vós, ante cujos olhos foi
apresentada a imagem de Jesus Cristo crucificado? [...] Todos os que se
apóiam nas práticas legais estão sob um regime de maldição" (Gl 3,
1.10). E pouco antes, afirmava: "Nós cremos em Jesus Cristo, e tiramos
assim a nossa justificação da fé em Cristo, e não pela prática da lei"
(Gl 2, 16).
São Paulo e os gregos
Se Paulo teve de enfrentar oposições
dentro de seu próprio povo, viuse também contestado pelos gregos, que
apresentavam objeções de teor completamente diferente, mas não menos
perigosas. A Grécia, principal centro da cultura naqueles tempos,
orgulhava-se da fama de seus pensadores e de ser o berço da filosofia.
Ora, a palavra e a pregação trazidas por Paulo, "longe estavam da
eloqüência persuasiva da sabedoria" (I Cor 2, 4), como ele mesmo
afirmava.
Assim, não raras vezes tornavase ele alvo
do desprezo ou objeto de vergonha para os convertidos. Ele pouco se
importava com as ofensas feitas à sua pessoa, mas receava que seus
discípulos fizessem eco a idéias tão vãs ou viessem a sucumbir, por medo
das humilhações. Por isso, escrevia ele aos fiéis de Corinto, cidade
onde principalmente essas falsas doutrinas haviam encontrado aceitação:
"A linguagem da Cruz é loucura para os que se perdem, mas para os que
foram salvos, para nós, é uma força divina" (I Cor 1, 18).
Não era esse, porém, o pior dos
obstáculos encontrados por Paulo na Grécia. Afundados na devassidão e na
desordem moral, os gregos haviam elaborado, ao longo dos tempos, uma
justificativa para os seus maus costumes, negando a ressurreição dos
mortos. Alguns mesmo, como Epicuro de Samos (†270 a.C.), chegaram a
afirmar que a alma humana é material e mortal.
Algemado, Paulo é levado de Jerusalém a Roma. Durante a viagem, não perdia a oportunidade de anunciar o Evangelho em todos os lugares por onde passava |
No próprio Evangelho percebemos lampejos
dessa candente temática quando os saduceus - que, por influência
helênica, não acreditavam na ressurreição - se aproximaram de Jesus para
pô-lo a prova, mediante uma pergunta capciosa (cf. Lc 20, 27-39). A
discussão, como vemos, vinha de longa data e se erguia como principal
empecilho para o desenvolvimento do apostolado paulino.
Talvez Paulo, em seus tempos de fervor
fariseu, já tivera de enfrentar os mesmos saduceus a esse propósito.
gora, porém, como cristão, possuía o argumento da Ressurreição de Cristo
e contava com o poderoso auxílio da graça.
Grande Apóstolo da Ressurreição
As dúvidas expostas pelos gregos, quando
não a oposição aberta, servirlhe- iam de estímulo para aprofundarse mais
na doutrina da ressurreição e deixá-la explicitada para os séculos
futuros. Assim escreveu ele aos coríntios: "Ora, se se prega que Jesus
ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que não há
ressurreição? Se não há ressurreição dos mortos, nem Cristo ressuscitou.
Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa
fé. [...] Se é só para esta vida que temos colocado a nossa esperança
em Cristo, somos, de todos os homens, os mais dignos de lástima. Mas
não! Cristo ressuscitou dentre os mortos como primícias dos que
morreram!" (I Cor 15, 12-14; 19-20).
Custoso era, para aqueles gregos de vida
desregrada, ter de assimilar esses princípios. Aceitando a ressurreição
da carne, ver-se-iam forçosamente convidados a uma mudança de costumes e
a abraçarem um modo de pensar e de comportar-se condizente com essa
esperança. Mas até mesmo suas relutâncias contribuiriam para o bem, como
afirma o próprio Paulo: "Oportet et haereses inter vos esse" (I Cor 11,
19) - é necessário que haja partidos, ou heresias, entre vós. Impelido
pelas circunstâncias, Paulo se transforma no grande Apóstolo da
Ressurreição.
Cordeiro e leão ao mesmo tempo
Nem tudo, porém, eram combates para o
incansável Paulo. Se face ao erro e à falta de fé ele mostrava todo o
seu ardor combativo e sua intransigência, em relação aos bons deixava
entrever um fundo de alma extremamente afetuoso e compassivo, ordenado
segundo a caridade de Cristo. Nesta admirável conjugação de virtudes, na
aparência opostas, Paulo assemelhava-se ao Divino Mestre, sempre
disposto a perdoar ou pronto a repreender, a ser Cordeiro e Leão ao
mesmo tempo.
Em sua carta aos fiéis de Filipos, que se
inquietavam por seus sofrimentos e suas necessidades, assim escreve:
"Deus me é testemunha da ternura que vos consagro a todos, pelo
entranhado amor de Jesus Cristo!" (Fil 1, 8). E ainda, aos mesmos
gálatas, que antes invectivara a respeito de seus desvios, escrevia mais
adiante: "Filhinhos meus, por quem de novo sinto dores de parto, até
que Cristo seja formado em vós, quem me dera estar agora convosco" (Gl
4, 19).
São Paulo, segundo Bossuet
Difícil é exaltar o Apóstolo das Gentes
em espaço tão exíguo. A pluralidade estonteante de seus feitos, o poder
de sua voz e o alcance de sua ação apostólica, cujos frutos até hoje
alimentam a Igreja, deixam em embaraço qualquer escritor. Por isso
recorremos à incomparável eloqüência de Bossuet, que assim descreveu o
ímpeto da pregação do Apóstolo:
"Este homem, ignorante na arte do
bem-falar, de locução rude e de acento estrangeiro, chegará à esmerada
Grécia, mãe de filósofos e oradores, e, apesar da resistência mundana,
fundará mais igrejas do que Platão teve discípulos. Pregará a Jesus em
Atenas, e o mais sábio dos oradores passará do Areópago para a escola
deste bárbaro. Continuará mais adiante em suas conquistas, e abaterá aos
pés do Senhor a majestade das águias romanas na pessoa de um prócônsul,
e fará tremer em seus tribunais os juízes diante dos quais fora citado.
Roma ouvirá sua voz, e um dia aquela velha mestra sentir-se-á mais
honrada com uma só carta do estilo bárbaro de São Paulo, dirigida a seus
cidadãos, do que por todas as famosas arengas que outro dia escutara de
Cícero."
A prisão em Jerusalém
Sim, Roma, haveria de ouvir sua pregação e
suas ruas calçadas de grandes pedras seriam pisadas pelos pés do
Apóstolo. Esses pés, entretanto, arrastariam pesadas correntes que lhe
tolheriam a liberdade dos movimentos. Acusado pelo ódio de seus
concidadãos, por causa de sua fidelidade a Cristo, Paulo fora entregue à
justiça romana. Se seu corpo suportava as cadeias e os grilhões, sua
alma sentia pesar sobre si o suave jugo de Cristo. Prisioneiro do
Espírito (cf. At 20, 22), Paulo recebera, à noite, esta revelação:
"Coragem! Deste testemunho de Mim em Jerusalém, assim importa também que
o dês em Roma" (At 23, 11).
Na prisão, São Paulo pregava aos carcereiros e escrevia aos seus discípulos (retábulo da Basílica de São Paulo em Toronto, Canadá) |
Obediente à inspiração recebida, Paulo
exclamará no tribunal do governador Festo: "Estou perante o tribunal de
César. É lá que devo ser julgado. [...] Apelo para César!" (At 25,
10-11). Querendo desfazer-se de caso tão complicado, que envolvia
assuntos da religião judaica, Festo apressou- se em satisfazer o desejo
do preso, mandando-o para Roma, algemado e sob a guarda do centurião
Júlio.
O primeiro período de pregação em Roma
Durante a viagem, Paulo não perdia a
oportunidade de anunciar o Evangelho em todos os lugares por onde
passava. Após várias dificuldades ao longo da travessia e enfrentar um
naufrágio, fez escala em Siracusa, na Sicília, e dali foi conduzido a
Reggio (cf. At 28, 12-13).
Uma vez chegado à capital do Império e
instalado em prisão domiciliar, Paulo realizava um anseio que havia
tempos acalentava no coração, como ele mesmo o expressara aos cristãos
de Roma: "Daí o ardente desejo que eu sinto de vos anunciar o Evangelho
também a vós, que habitais em Roma" (Rm 1, 15). Dois anos haveria de
durar seu doloroso cativeiro, mas ele, como afirma São João Crisóstomo,
"considerava como brinquedo de criança os mil suplícios, os tormentos e a
própria morte, desde que pudesse sofrer alguma coisa por Cristo".
Aproveitou o tempo para pregar o Reino de Deus (cf. At 28, 31), escrever
numerosas cartas às comunidades da Grécia e da Ásia, as chamadas
Epístolas do cativeiro.
Mas a Providência pedia de seu Apóstolo
ainda mais alguns anos de abnegação e fadigas, a ele que suspirava pela
morte, considerando-a um lucro para ganhar a Cristo (cf. Fl 1, 21).
Novas viagens e retorno à capital do Império
Libertado por um decreto jurídico, Paulo
ainda visitaria Creta, Espanha e novamente as conhecidas igrejas da Ásia
Menor, pelas quais tanto se dedicara. Afinal voltaria a Roma para onde
se sentia atraído, talvez por um secreto pressentimento da proximidade
da "coroa da justiça" (II Tm 4, 8) que ali o aguardava.
Sobre o trono dos césares sentavase então
o terrível Nero, cuja crueldade, aliada a um orgulho patológico, já
fizera sua fama. Era conhecido o ódio que votava aos cristãos, e Paulo
não passou despercebido à perspicácia dos espiões do tirano.
Acusado como chefe da seita, foi preso
pela polícia imperial e lançado no Cárcere Mamertino, onde, segundo uma
antiga tradição, já se encontrava Pedro. Nesse escuro subterrâneo, de
estreitas dimensões e teto baixo, o Pontífice da Igreja de Cristo e o
Apóstolo das Gentes estiveram acorrentados a uma mesma coluna. Assim,
unidos numa mesma Fé e esperança, estavam ambos amarrados pelas cadeias
do amor ao Rochedo, que é Cristo (cf. I Cor 10, 4).
O martírio de São Paulo
Chegou por fim o dia em que Paulo deveria
"ser imolado" (II Tm 4, 6). Para ele a morte pouco significava, pois já
se achava morto para o pecado e vivo para Deus (cf. Rm 6, 11). Uma
entranhada e exclusiva união o ligavam a seu Senhor. Não era ele mesmo
que vivia, mas sim Cristo quem nele habitava (cf. Gl 2, 20) e operava.
O sublime imitador de Jesus Cristo sela seu testemunho com o próprio sangue. "Martírio de São Paulo" - Paróquia de Maroggia (Itália) |
Condenado à morte, Paulo, por ser cidadão
romano, não podia, como Pedro, sofrer a pena ignominiosa da crucifixão,
mas sim a da decapitação, e esta devia dar-se fora dos muros da cidade.
Conduzido por um grupo de soldados, o Apóstolo arrastou seus pesados
grilhões ao longo da Via Ostiense e, depois, pela Via Laurentina, até
alcançar um distante vale, conhecido pelo nome de Aquæ Salviæ.
Ali, entre a vegetação daquela região
pantanosa, o sublime imitador de Jesus Cristo selava seu testemunho com o
próprio sangue. Sua cabeça, ao cair no solo sob o golpe fatal da
espada, saltou três vezes, fazendo brotar em cada um dos pontos uma
fonte de água borbulhante. Este fato, se não comprovado pela História,
baseia- se numa piedosa tradição confirmada pelo nome de Tre Fontane,
que ostenta o mosteiro trapista construído naquele local.
"Combati o bom combate"
Paulo morrera, mas sua monumental obra
apostólica, fundamentada na caridade que consumira sua vida, continuava
viva e produziria ao longo dos tempos abundantes frutos para a Igreja.
Até o último alento, sua vida não fora senão uma grande luta. Luta de
entusiasmo e de entrega, de desprendimento e de heroísmo; luta para
levar o Evangelho a todas as gentes, confiando sempre na benevolência de
Cristo.
Os piores vagalhões da vida não puderam
atingir o seu tabernáculo interior. Sua firmeza, semelhante à
imobilidade de um rochedo batido pelas ondas do mar, mantinhase
inalterável em meio às maiores angústias e agonias, certo de que nem a
vida nem a morte o poderiam separar do amor de Cristo (cf. Rm 8, 38-39).
E uma vez concluído o combate, percorrida
toda a sua carreira e chegado ao termo de sua peregrinação terrena (cf.
II Tm 4, 7), o Apóstolo apareceu ante o olhar admirado da humanidade,
em toda a sua estatura de gigante da Fé, transmitindo para os séculos
futuros esta mensagem: "Por ora subsistem a fé, a esperança e a caridade
- as três. Porém, a maior delas é a caridade. A caridade jamais
acabará!" (I Cor 13, 13.8).
Estando preso em Roma, o incansável
Apóstolo não deixou de pregar, e obteve a conversão de incontáveis
almas. Posto em liberdade no início do ano 64, dirigiu-se à Espanha e à
Ásia. Retornando a Roma, foi preso novamente, desta vez com São Pedro.
Ficaram eles na prisão mais antiga de
Roma, o Cárcere Mamertino, local impregnado de bênçãos, que comove a
quantos por lá passam. Com efeito, como não se impressionar ao
contemplar, logo nos primeiros degraus da estreita escada que leva ao
calabouço, a marca do rosto do Príncipe dos Apóstolos, milagrosamente
impressa na parede de pedra? E que emoção ao ver no canto da cela a
fonte que brotou do solo, possibilitando aos Apóstolos batizarem os
próprios carcereiros, convertidos pelo seu exemplo e pregação!
No final de sua heróica vida, pôde o
Apóstolo das Gentes cantar este hino de triunfo do varão que sente a
consciência limpa na hora do encontro com o Supremo Juiz: "Combati o bom
combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora
receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele
dia, e não somente a mim, mas a todos aqueles que aguardam com amor a
sua aparição" (11).
Grandiosa foi sua vida, tal será também
sua morte. Sendo cidadão romano, São Paulo não podia ser crucificado.
Foi, assim, decapitado pela espada, no ano 67. Conta-nos a tradição que
sua cabeça, rolando ao solo, saltou três vezes e fez brotar três fontes
que podem ser vistas ainda hoje na Igreja de San Paolo alle Tre Fontane,
na via d'Ostia, em Roma.
(Revista Arautos do Evangelho, Jul/2008, n. 79, p. 26 à 33)
Nenhum comentário:
Postar um comentário