[bibliacatolica]
Fonte: http://www.teologoresponde.
Tradução: Carlos Martins Nabeto
[Quanto a isso,] tenho me expressado de vários modos, por exemplo:
“Estimado
irmão em Cristo: Folheando um antigo tratado de religião, li um trecho
que dizia que muitas seitas ou ‘igrejas’ acreditam que os versículos 18 e
19 do capítulo 16 do Evangelho de Mateus foi um acréscimo posterior
para justificar o poder do Papa e da Igreja Católica. O que há de certo
nisso? Faz parte do manuscrito original? Pode ter havido alguma
modificação em algum dos Evangelhos e justo neste em especial?”
Os
especialistas em Sagradas Escrituras têm estudado muito esse tema. Para
responder a esta consulta, me baseio no que apontam Leal, Del Páramo e
Alonso, em seu comentário a esta passagem[1]. Tem havido aqueles que
afirmaram que os versículos 17 a 19 do capítulo 16 de Mateus foram
interpolados no Evangelho em fins do século II, ou entre os anos 110 a
120, ou ainda no tempo de Adriano (117-138), pela Igreja romana.
Harnack
acredita que apenas foram interpoladas as palavras “e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”; o texto original diria: “E as portas do Hades não te vencerão”,
por cujas palavras se prometia apenas a Pedro – unicamente – a
imortalidade (segundo esse autor). Porém, estas afirmações são
contrárias a todos os códices e antiquíssimas versões, dos autores mais
antigos da Cristandade, que unanimemente leem o texto como a Igreja
sempre leu. Por outro lado, o colorido semítico bem marcado que esses
versículos apresentam não pode ter uma origem romana, conforme afirmam
esses críticos.
Outros autores não têm dificuldade em admitir que
essas palavras foram efetivamente escritas por São Mateus, mas pretendem
que não foram ditas por Cristo. Refletiriam, ao contrário, o conceito
que a Igreja primitiva de Jerusalém já fazia de São Pedro e sua relação
com a Igreja. Efetivamente, Pedro, como primeira testemunha do Cristo
ressuscitado (cf. 1Coríntios 15,5) e como primeiro pregador da
ressurreição (cf. Atos 2,14ss), teve, desde o princípio, na mente dos
primeiros cristãos, um lugar privilegiado e foi considerado chefe de
toda a comunidade. Este conceito – dizem esses autores – teria sido
deixado por São Mateus, colocando na boca de Cristo as palavras
dirigidas a São Pedro nessa seção.
Esta teoria que, como vemos,
acaba por questionar a probidade e fidelidade histórica de Mateus,
fundamenta-se em princípios apriorísticos e hipóteses arbitrárias, tal
como, principalmente, supor gratuitamente uma evolução dos atos e
palavras de Cristo ao fim de uns tantos anos, isto é, quando ainda
viviam testemunhas oculares dos acontecimentos. Supõe ainda, falsamente,
que a origem e o progresso da religião e doutrina cristã foram lançados
ao arbítrio da fantasia popular e, finalmente, atira por terra o
verdadeiro conceito e valor da Tradição Apostólica. Como quer que seja,
os mesmos que sustentam que tal seção foi tardiamente interpolada no
Evangelho são obrigados a reconhecer que São Justino, antes do ano 165
(data da sua morte), já a conhecia como pertencente ao episódio de
Cesareia[2].
Esta teoria da interpolação está hoje praticamente
abandonada, tanto por argumentos externos quanto internos. Externamente,
pelo testemunho unânime dos códices, das versões antigas e citações dos
Padres; por unanimidade, as fontes em favor da autenticidade não
autorizam a alegação de texto interpolado; e quem o afirma, o faz
gratuitamente e sem testemunhos antigos que lhe sejam favoráveis. A
partir do ponto de vista da crítica interna, fica demonstrado o caráter
semítico de várias expressões que se encontram nesses versículos,
indicando a origem palestinense da Tradição que preservou esse logion, já que demonstra que foi entregue na língua aramaica antes de ter sido traduzida para o grego. Essas expressões semíticas são:
a) Simon bar Iona;
b) Carne e sangue (expressão semítica para indicar o homem mortal, abandonado às suas próprias forças);
c) Pai… que está nos céus;
d) Tu és Pedro e sobre esta pedra (palavras que em aramaico correspondem-se perfeitamente: “Kefa”…”Kefa”);
e) Chaves do reino dos céus… será desatado nos céus (os judeus usavam esta palavra para evitar [pronunciar] o nome santo de Deus);
f) Atar-desatar (expressão usada pelos rabinos).
b) Carne e sangue (expressão semítica para indicar o homem mortal, abandonado às suas próprias forças);
c) Pai… que está nos céus;
d) Tu és Pedro e sobre esta pedra (palavras que em aramaico correspondem-se perfeitamente: “Kefa”…”Kefa”);
e) Chaves do reino dos céus… será desatado nos céus (os judeus usavam esta palavra para evitar [pronunciar] o nome santo de Deus);
f) Atar-desatar (expressão usada pelos rabinos).
Porém, inclusive, deve-se dizer que não se trata apenas de algumas palavras semitas, mas “a
própria estrutura da passagem por completo (…) E tão claro é isso que o
próprio [biblista protestante] Bultmann diz: ‘Não vejo condições de sua
origem ter sido realizada em outra comunidade primitiva, a não ser a de
Jerusalém’. Assim, a passagem demonstra que não foi redigida em um
ambiente romano, como se pretendia”[3]. Vejamos em maiores detalhes algumas das expressões mais caracteristicamente semitas:
a) O nome de Pedro: duas coisas são ditas sobre o nome do Apóstolo Pedro, que nos indicam a inconfundível autenticidade do texto:
- A primeira é a expressão “Filho de Jonas”,
expressão “saborosa”, pois era costume judeu apontar, depois do nome
das pessoas, especialmente quando se queria fixar bem a mesma, com
precisão e exatidão, o nome de seu pai, expresso pela palavra “ben”
(=filho de) ou na forma aramaica empregada aqui “bar” (podemos ver
outros exemplos em: Isaías 1,1; Jeremias 1,1; Ezequiel 1,1 etc). Manuel
de Tuya[4] aponta que a expressão “bar Yona” (pombo) não era um nome
raro em Israel (cf. 2Reis 14,25; Jonas 1,1). Seguindo São Jerônimo,
alguns pensaram que a forma “Yona” fosse uma abreviação do nome Yohanan
(=João), visto que posteriormente Pedro é chamado de “filho de João”
(cf. João 21,15). Porém, os autores semitas não costumam a admitir a
abreviação de João, já que tal uso não se verifica; ao contrário, pensam
que o nome de João, patronímico de Simão, poderia ser um sobrenome
grego escolhido por sua semelhança com o verdadeiro nome hebreu. O fato
que aqui nos interessa é o seu forte valor aramaico e, portanto, nos
torna possível rejeitar o caráter interpolado ou posterior deste texto;
ao contrário, nos faz inclinar a aceitar o seu caráter arcaico e
original.
- A segunda expressão é “és pedra”: “Petrus”,
em latim; “Petros”, em grego, “Kefa” ou “Kefas”, em aramaico (segundo se
translitere). (…) O nome próprio deste filho de Jonas foi “Simão” ou
“Simeão”, e assim é transliterado no Novo Testamento em grego. Porém,
todos os evangelistas atestam que Jesus lhe aplicou um novo nome, que em
grego se escreve “Kefas” ou “Petros” (cf. João 1,42; Lucas 6,14; Mateus
10,2).
No tempo em que Paulo escreveu sua carta aos Gálatas (ano
54) e a primeira aos Coríntios (ano 57), as igrejas paulinas conheceram
aquele apóstolo da circuncisão não pelo seu nome próprio (“Simão”, que
Paulo nunca usa), mas pelo seu novo nome (“Kefas”, que Paulo quase
sempre usa; ou “Petros”, que Paulo usa duas vezes [Gálatas 2,7-8]).
Paulo supõe que seus ouvintes conhecem bem quem é este “Kefas” ou
“Petros”). Portanto, nas igrejas paulinas, até o ano 55, o uso daquele
nome novo de tal modo havia prevalecido, que o nome próprio “Simão”
havia sido abandonado.
Contudo, os evangelistas, tratando do
príncipe dos Apóstolos, não empregavam o nome “Kefas”: Marcos e Lucas o
chamam de “Simão” até o momento da vocação dos Doze (Marcos 3,16; Lucas
6,14), depois disso chamam-no de “Petros”; Mateus o chama “Petros” desde
o início; João o chama de “Petros” ou “Simão Petros”; porém, observam
que Jesus usa o nome de “Simão” até o fim (p.ex.: Mateus 16,17; 17,25;
Marcos 14,37; Lucas 22,31; João 21,15-17). Portanto, quando os
evangelistas habitualmente o chamam de “Petros”, evidentemente empregam o
nome usado pela Igreja no tempo em que escreveram.
Levando isto
em conta, podemos nos perguntar: como se explica o fato de que aquele
nome novo (“Kefas” ou “Petros”) prevalecesse tão universalmente na
Igreja primitiva, de tal forma que o nome próprio daquele homem
(“Simão”) acabou sendo quase esquecido? Não parece que isto se explique
adequadamente apenas pelo fato de que o próprio Jesus lhe impôs este
nome, já que Jesus também chegou a impor um nome a João e Tiago
(“Boanerges”, cf. Marcos 3,17) e este não prevaleceu. Tampouco parece
que possa explicar-se por que prevaleceu tão universalmente, a não ser
pelo fato de a Igreja ter reconhecido a grande importância que tinha o
significado daquele nome e porque esse significado fazia parte da
Tradição querigmática: consideremos que nem “Kefas” nem “Petros” eram
conhecidos como nome masculino antes do uso que lhe dará Cristo ao
aplicar-lhe a Simão. É um nome novo, usado pela primeira vez na Igreja
cristã. A formação do nome grego “Kefas” a partir da palavra aramaica
escrita com caracteres gregos e terminação de gênero masculino demonstra
que a Igreja sabia que Jesus aplicou a Simão a voz “Kefa”. Em grego,
“petra” é a massa pétrea; “petros” é a pedra. Pois bem: há que se
observar que segundo a lei linguística comum, os nomes próprios não se
traduzem, mas são transpostos tal qual em outras línguas. Exemplos são
os nomes de Jesus, Maria, José e João: todos significam alguma coisa
apenas na língua hebraica; no entanto, esses nomes nunca são traduzidos
quando recebidos pelas línguas grega, latina ou modernas. Portanto, foi
uma exceção à essa regra o fato de que a Igreja não se reteve no nome
“Kefas”, mas que o uso sancionou a versão deste nome, isto é, “Petros”.
Tal exceção de regra linguística exige uma explicação, a qual não parece
ser outra senão a consciência da Igreja quanto ao significado deste
nome.
Em suma: a Igreja primitiva não apenas sabia que
Jesus tinha imposto este nome a Simão como também conhecia a Tradição
que justificava a grande importância dada a este nome. Tais fatos
confirmam a historicidade deste logion.
b) “Eu te darei as chaves do reino dos céus”:
Esta é outra das metáforas de inconfundível origem palestinense e
ambiente bíblico. A expressão “reino dos céus” responde ao uso judaico
de se evitar [pronunciar] o santo Nome de Deus, ao que Mateus adere em
seu Evangelho: por isso, onde Mateus diz “reino dos céus”, se o texto
possui paralelo em outros evangelistas, encontraremos “reino de Deus”.
Com efeito, “chaves dos céus” ou “chaves do reino dos céus” é a mesma
coisa que “chaves do reino de Deus”. “Reino de Deus”, na boca de Jesus,
não significa tão somente aquele domínio absoluto de Deus que se
iniciará no Juízo Final, mas que também significa aquele domínio de Deus
já exercitado e reconhecido nesta Terra, tanto na pessoa e obras de
Cristo quanto na Igreja que Ele mesmo quis fundar.
A metáfora de
“dar as chaves” possui amplo uso bíblico e judaico. Exemplo claríssimo
desse uso pode-se encontrar em Isaías 22,19-22. Nessa passagem fica
claro o sentido da metáfora: aquele que possui as chaves da casa real
(porque Davi é rei por excelência) possui verdadeira autoridade sobre os
habitantes daquele reino, autoridade essa que exerce como vigário do
próprio rei. Strack-Billerbeck propõe muitos exemplos desta imagem na
literatura judaica e conclui: “a entrega das chaves significa a entrega do poder de uma cidade”.
No Novo Testamento, o próprio Cristo é descrito como o Santo e
Verdadeiro que possui a chave de Davi, que abre e ninguém fecha, fecha e
ninguém abre (Apocalipse 3,7). Trata-se, incontestavelmente, do
exercício da autoridade real.
No texto de Mateus 16,19, Cristo – que possui as chaves de Davi – diz a Pedro: “E te darei as chaves do reino dos céus”. “Dar
as chaves” é entregar o poder vicarial. Isto quer dizer que Pedro é
constituído “porteiro do céu”, com o poder de permitir ou impedir a
entrada no céu? Ou é constituído vigário de Cristo, com autoridade sobre
o povo de Deus nesta Terra? A resposta provém da própria noção de poder
vicarial: nos céus, o próprio Cristo está presente para reger e não
precisa de vigário; ao contrário, na Terra, não está visivelmente
presente para reger visivelmente os homens. Esta resposta se confirma
pelo contexto imediato desta promessa. Isto porque não são três
promessas diferentes, mas uma só promessa sob uma tripla imagem. Na primeira metáfora,
vimos que Cristo fala de sua Igreja ou de seu Povo, como de uma casa
que será edificada sobre um homem, Pedro. Sem dúvida nenhuma, trata-se
da Igreja que será fundada nesta Terra, de forma social, de modo que
possa ser edificada sobre um homem visível. Na terceira metáfora,
fala-se do poder de Pedro nesta Terra: “tudo o que atares… desatares na Terra”; logo, o poder das chaves será exercido nesta Terra.
c) A metáfora de “atar e desatar”: “E tudo o que atares na Terra será atado no Céu; e tudo o que desatares na Terra, será desatado no Céu”.
O sentido desta metáfora indica o poder moral de proibir ou permitir,
de excluir ou admitir na comunidade. A universalidade deste poder tem
explicação na expressão repetida “tudo o que”. A ratificação divina é
expressa pela frase “no céu”, que significa “diante de Deus”.
Resta
tratarmos uma questão: podemos dizer que aqui se promete a Pedro a
autoridade suprema e universal, já que posteriormente o mesmo poder de
atar e desatar será dado aos demais Apóstolos? O contexto nos oferece a
resposta: a intenção de Cristo ao empregar a tripla imagem é que cada
uma ilumine e esclareça as outras. O poder de atar e desatar explica
melhor o poder das chaves, que é entregue apenas
a Pedro; e ilumina sua função como única pedra sobre a qual a Igreja
será edificada. Portanto, este poder de atar e desatar é prometido agora
àquele único homem que será pedra de toda a Igreja, o único que
possuirá as chaves do reino. Retamente se conclui que Cristo quis
dar-lhe o poder supremo e universal; é então irrelevante que em outro
lugar se prometa a todo o Colégio Apostólico o poder de atar e desatar,
já que a autoridade suprema e universal que um possui, não exclui uma
verdadeira autoridade também participativa pelos demais. O poder supremo
não é, por si só, poder único e exclusivo.
O que se deve destacar
aqui é a força bíblica dessa expressão: os verbos gregos “deses”
(atar) e “luses” (desatar) traduzem literalmente os verbos hebraicos
“asar” e “natar” ou “shera”, em aramaico. Assim, por exemplo, por volta
do ano 70 d.C., o rabi Jeconias iniciou sua escola com uma oração em que
pedia a Deus “não proibir” (=atar) o que é permitido (=desatado), nem
“permitir” (=desatar) o que é proibido (=atado)”[5]
d) “Carne e sangue”: Cristo diz que isto “não te revelou nem a carne e nem o sangue”,
expressão bastante frequente na linguagem bíblica, que responde à forma
“basar wadam”, com que se expressa nesse caso, com circunlóquio, o
homem em seu aspecto de debilidade inerente à sua condição humana,
máxime em sua contraposição à Deus. São Paulo, em Gálatas 1,16, também a
emprega: “sem pedir conselho nem à carne nem ao sangue”, isto é, a homem nenhum. E em Efésios 6,12: “Nossa luta não é contra a carne e o sangue”, ou seja, não é contra homens.
Portanto,
mediante estas imagens, cada qual iluminando e confirmando a outra,
Cristo promete a um só Apóstolo – Pedro – a autoridade suprema e
universal para reger a Igreja. Notemos que a força do argumento
encontra-se principalmente nestas duas razões:
1) No sentido bíblico e judaico dessas imagens – trata-se da mentalidade dos antigos;
2) Na perfeita coerência e mútua confirmação das três imagens no sentido de autoridade vicarial.
Talvez
somente a imagem de pedra não tivesse bastado; porém, não está só, mas
une-se com a promessa de invicta estabilidade da Igreja assim
fundamentada: na promessa das chaves; na promessa do poder de atar e
desatar; na promessa de ratificação do exercício desse poder inclusive
diante de Deus. A única interpretação admissível é a que explica não
apenas uma ou outra imagem, independentes uma das outras, mas a que
todas, tomadas conjuntamente, explica e demonstra como concordam entre
si. A esta exigência de uma sã exegese, somente a noção de autoridade
vicarial satisfaz.
—–
NOTAS:
NOTAS:
[1] Cf. “Sagrada Escritura – Texto e Comentário pelos Professores da Companhia de Jesus”. BAC, 1964, tomo 1, pp. 183-184.
[2] Cf. “Bíblia Comentada pelos Professores de Salamanca”. BAC, 1964, tomo 2 (Evangelhos), p. 379. O tomo dedicado aos Evangelhos está a cargo de Manuel de Tuya, O.P.
[3] Cf. Tuya, obra citada, p. 380.
[4] Cf. Tuya, obra citada, p. 379.
[5] Strack-Bilerbeck, citado por Tuya, obra citada, p. 378. Cf. Bonsirven, “Textes Rabbiniques”, 1955 nºs 1195, 624, 831, 842, 1984, 423.
Nenhum comentário:
Postar um comentário