domingo, 2 de novembro de 2025

ARTIGO DE OPINIÃO: Carta aberta a Leão XIV por ocasião do 60º aniversário da declaração conciliar Nostra aetate

 

 

Por: Francisco José Vegara Cerezo 
sacerdote de Orihuela-Alicante 

 

Santidade, 

A leitura de sua mensagem na Audiência Geral realizada por ocasião do sexagésimo aniversário da declaração conciliar Nostra Aetate despertou em mim profundas preocupações. Por isso, passo agora a compartilhar, seguindo suas próprias palavras, que destaquei em itálico, as questões e reflexões que surgiram em minha mente. 

No centro de nossa reflexão de hoje, nesta Audiência Geral dedicada ao diálogo inter-religioso, desejo me concentrar nas palavras do Senhor Jesus à mulher samaritana: “Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade” (Jo 4,24). 

Pode Deus ser verdadeiramente adorado em religiões que não foram fundadas naquele que é a sua Verdade, nem são guiadas pelo seu Espírito? 

Este encontro revela a essência do autêntico diálogo inter-religioso: uma troca que ocorre quando as pessoas se abrem umas às outras com sinceridade, escuta atenta e enriquecimento mútuo. É um diálogo que nasce da sede: a sede de Deus no coração humano e a sede da humanidade por Deus.  

Será que todas as religiões são capazes de saciar a sede de Deus que habita o coração humano? 

No poço de Sicar, Jesus transcende as barreiras da cultura, do gênero e da religião, convidando a mulher samaritana a uma nova compreensão da adoração, uma que não se limita a um lugar específico, mas se realiza em espírito e em verdade. 

Será que Jesus veio, em vez de fundar a única igreja capaz de administrar a graça redentora e oferecer adoração em espírito e em verdade, para declarar que todas as religiões, sem quaisquer barreiras, são válidas para esse propósito? Certamente, Jesus transcendeu as barreiras da cultura e do gênero, apresentando uma proposta que pôs fim às fronteiras entre os povos e à preeminência de um sexo sobre o outro; mas como se pode dizer que ele também transcendeu as barreiras religiosas, se não veio para estabelecer algo que fosse além da esfera religiosa, mas sim a verdadeira religião que a preencheria plenamente? A mensagem é tão estritamente religiosa que o primeiro passo inevitável para aceitá-la é a conversão, que implica a transformação religiosa do homem, estabelecendo, por um lado, a prioridade do religioso sobre tudo o mais e, por outro, a ruptura com quaisquer outros laços religiosos, tornando a opção por Cristo incompatível com qualquer outra filiação religiosa, o que equivaleria à idolatria e à apostasia. 

Este momento incorpora o mesmo significado do diálogo inter-religioso: descobrir a presença de Deus para além de todas as fronteiras e o convite a buscá-lo com reverência e humildade. 

Pode alguma religião realmente oferecer a presença de Deus para além de todas as fronteiras? E pode-se buscar a Deus abstraindo-se de uma religião específica? Isso implica a relativização de todas as religiões, inclusive aquela da qual o próprio Papa se apresenta como chefe, e cujas abissais divergências as transformariam em entraves para uma tão louvada unidade que não passaria de um sincretismo indefinido.

Este documento esclarecedor (Nostra Aetate) ensina-nos a encontrar os seguidores de outras religiões não como estranhos, mas como companheiros de jornada no caminho da verdade; a honrar as diferenças afirmando a nossa humanidade comum; e a discernir, em toda busca religiosa sincera, um reflexo do único Mistério divino que abrange toda a criação. 

Pode-se encontrar um caminho para a verdade salvífica em todas as religiões? Será que o fato comum da natureza humana, que obviamente abrange todas as pessoas, está acima das diferenças religiosas, que, no caso da religião cristã, têm um evidente caráter sobrenatural? Seria o sobrenatural, então, secundário e até negativo diante da igualdade da natureza? E isso não relativiza e até trivializa a essência sobrenatural do cristianismo? Além disso, todas as religiões permitem igualmente uma busca sincera pela verdade religiosa, refletindo o único mistério divino? E como se pode dizer que esse mistério abrange toda a criação, como se estivesse contido nela? Não deveríamos, antes, dizer que o mistério divino supera infinitamente — isto é, transcende — toda a criação, de modo que a eminência de Deus sobre todas as suas obras possa ser claramente mantida? E será que este mistério divino transcendente pode ser adequadamente refletido e expresso por todas as religiões, quando apenas uma, a Igreja Católica, possui a totalidade da revelação sobrenatural: a Escritura e a Tradição da Igreja? Ou será que a revelação sobrenatural é agora secundária à unidade da natureza humana, que certamente pode ser portadora da revelação natural, mas sem ignorar que esta natureza foi profundamente danificada pelo pecado original, que, como o Magistério ensinou até agora, torna impossível ao homem, privado do auxílio da graça, discernir sem erro e alcançar o caminho da salvação? Além disso, como pode esta graça agir através de diferentes religiões se apenas a Igreja Católica pode ser o seu autêntico canal? A tese que sustenta isso é a de que, fora da Igreja Católica, chamada de "sacramento universal da salvação" por estar unida a Cristo como sua cabeça e sacramento fundamental, não há salvação, pois se a Igreja não orasse e intercedesse por todas as pessoas, ninguém seria salvo. 

Poderíamos ir ainda mais fundo, pois como é possível tentar encobrir as diferenças radicais e incompatíveis entre tantas religiões com o tecido desgastado da natureza humana, cujo denominador comum mínimo se reduz ao caráter misterioso que todas atribuem a si mesmas, mas que compreendem de maneiras tão antagônicas quanto incomensuráveis? Falar, então, de laços comuns em meio à disparidade absoluta entre as religiões existentes é uma mentira tão sarcástica quanto a comparação vulgar entre um ovo e uma castanha, quando esses seres biológicos compartilham, ao menos, uma forma mais ou menos esférica.

Certamente, como ninguém escolhe onde nascer, pode-se ignorar sem culpa a verdade salvífica da Igreja Católica; mas, em primeiro lugar, o julgamento de tal situação pertence a Deus, que, querendo, como diz o apóstolo, que todos os homens sejam salvos, fará com que o sol salvífico de Cristo não deixe nenhum homem que veio a este mundo sem iluminá-lo de alguma forma; em segundo lugar, há também a norma moral que obriga toda consciência a formar-se objetivamente segundo os meios à sua disposição, e, em terceiro lugar, temos a grave obrigação que pesa sobre todos os seguidores de Jesus, de ser luz no meio do mundo, de difundir o anúncio do Evangelho, visto que a consequência imediata da visão superficial de todas as religiões é a total inutilidade de algo tão intrínseco à essência da Igreja como a missão evangelizadora; De fato, se, como Francisco afirmou na Indonésia, todas as religiões nada mais são do que diferentes linguagens para se comunicar com Deus e os diversos caminhos que nos conduzem a Ele, qual o sentido de incomodar os outros com essas malditas exigências evangélicas, se já se disse que o corpo é criatura de hábitos e, portanto, seria melhor deixar cada um em paz, pois a pessoa se acostuma a tudo, tranquilamente e em casa, vivendo como peixe na água, na religião em que foi criada? 

Não nos esqueçamos de que o impulso inicial da Nostra Aetate foi voltado para o mundo judaico, com o qual São João XXIII procurou restabelecer o vínculo original. Pela primeira vez na história da Igreja, foi redigido um texto que reconhecia as raízes judaicas do cristianismo e repudiava todas as formas de antissemitismo. 

Embora se repudie sinceramente todas as formas de antissemitismo, pode-se ignorar a falsidade de identificar o judaísmo contemporâneo, com suas raízes talmúdicas — profundamente ofensivas ao cristianismo —, com o judaísmo do Antigo Testamento? Além disso, como afirma inequivocamente o Apóstolo, o verdadeiro Israel é composto por todos os que creem em Jesus, reconhecendo-o como o Messias e o único Redentor. 

O espírito da Nostra Aetate continua a iluminar o caminho da Igreja. Reconhece que todas as religiões podem refletir “um raio daquela verdade que ilumina todos os homens” e que buscam respostas para os grandes mistérios da existência humana.

Como já ensinaram os Padres da Igreja, as sementes da Palavra podem ser encontradas em toda parte; mas será que isso significa, de fato, a normalização de todas as religiões? Tal coisa implicaria negar o princípio fundamental de que a Igreja Católica é a única que não só possui a plenitude da salvação, mas também foi verdadeiramente desejada por Deus como receptora de sua revelação e como canal exclusivo de toda a graça conquistada por Cristo, de modo que qualquer verdade que outras religiões possuam parcialmente é o que elas compartilham com a Igreja Católica e até mesmo a tomaram emprestada dela. 

O diálogo deve ser não apenas intelectual, mas profundamente espiritual. A declaração convida a todos — bispos, clérigos, consagrados e leigos — a se comprometerem sinceramente com o diálogo e a colaboração, reconhecendo e promovendo tudo o que é bom, verdadeiro e santo nas tradições alheias. 

Pode-se estabelecer um diálogo verdadeiramente sincero e produtivo que, ao reconhecer o que é verdadeiro e bom, não aponte também o que é errado e lamentável? 

É evidente que, segundo o princípio da não contradição, os opostos não podem ser ambos verdadeiros. Então, será que o próprio fundamento de toda a lógica, e consequentemente de toda a racionalidade, pode ser desconsiderado para impor uma suposta verdade e bondade amalgamadas a partir da vasta diversidade das religiões? Como podemos deixar de perceber que, ao eliminar a racionalidade, estamos precisamente destruindo a única ponte que poderia facilitar o diálogo inter-religioso? Tal diálogo, para ser sério, deve necessariamente aventurar-se nas águas turbulentas do debate. Ou será que agora, brandindo a bandeira da verdade, iremos ao ponto de descartar tudo o que cheire a apologética? E que verdade resta, na realidade, quando o significado que lhe é atribuído pela unidade é eliminado, deslocado em meio a uma variedade caótica e amorfa? De fato, quando tudo é considerado verdadeiro, nada acaba sendo verdadeiro; em vez disso, tudo é despedaçado pelo relativismo voraz, cuja primeira vítima é a própria verdade. O pior é que, sem a verdade, não há Deus verdadeiro nem religião verdadeira, e o tão alardeado diálogo inter-religioso se transforma em uma troca inútil, um murmúrio constante. 

Em um mundo marcado pela mobilidade e pela diversidade, a Nostra Aetate nos lembra que o verdadeiro diálogo está enraizado no amor, fundamento da paz, da justiça e da reconciliação. 

Já que não existe amor verdadeiro fora da verdade, e o amor verdadeiro nada mais é do que o amor sobrenatural que define o próprio Deus, revelado por Cristo, será possível o amor autêntico fora da fé nessa revelação? Ou deveríamos equiparar o amor cristão, que brota do próprio Deus, com o que quer que cada pessoa entenda por amor, que é a palavra mais polissêmica que existe?

Devemos estar vigilantes contra o abuso do nome de Deus, da religião e do próprio diálogo, e contra os perigos do fundamentalismo e do extremismo. 

Se no paroxismo do relativismo nada mais é verdadeiro, o que é todo o uso do nome de Deus senão um abuso linguístico, desprovido de qualquer referência, não apenas real, mas meramente significativa? E o que se torna toda a religião senão um mero jogo de palavras, cuja pretensão à realidade, para além do imaginário cultural coletivo, seria também um completo abuso? Que moralidade, tão necessária para a convivência interpessoal e social, poderia então ser construída sobre areias movediças? Em suma, com toda a racionalidade possível dissolvida, que freio resta contra o extremismo fundamentalista e fanático, se a razão é a única força capaz de iluminar a vontade, para que esta, por sua vez, possa refrear o impetuosidade cega dos sentimentos? 

Nossas religiões ensinam que a paz começa no coração do homem. É por isso que a religião pode desempenhar um papel fundamental: devemos restaurar a esperança em nossas vidas, famílias, comunidades e nações. Essa esperança repousa em nossas convicções religiosas e na certeza de que um novo mundo é possível. 

De que servem ensinamentos radicalmente relativos? E que sentido faz apelar a eles em nome da paz e da humanidade, se essas mesmas noções divergem profundamente em cada religião? 

Como podemos falar de uma esperança comum entre as religiões, se toda esperança se fundamenta na fé, e a fé é precisamente o que distingue cada religião, de modo que a divergência entre as diferentes esperanças será tão grande quanto a divergência da fé da qual cada uma brota? 

Mais grave, porém, é que essa equiparação de esperanças dilui não apenas a natureza sobrenatural do cristianismo, mas também a transcendência de seu objetivo, como se vê no fato de sua redução à pura imanência deste mundo, como se a religião fosse uma mera ferramenta a serviço desta vida terrena, à semelhança da medicina ou da política.

Conceber a religião como uma ideologia política que possa coexistir com outras dentro da estrutura de um certo consenso fundamental é esquecer precisamente o caráter radical inerente a cada religião, e que a torna uma visão de mundo autêntica, incompatível, por definição, com qualquer outra, visto que a primeira reivindicação de qualquer religião é a do monopólio não apenas da força ou do território, mas de algo tão elementar quanto a verdade e a bondade; contudo, uma coisa é defender um diálogo civilizado entre as religiões, que será sempre melhor do que a imposição pela força bruta, e outra é reduzir tudo ao diálogo pelo diálogo, que se esvazia de todo conteúdo e só consegue desativar todas as religiões, despojadas de sua doutrina, que é a sua razão de ser; Contudo, o diálogo não pode ser um fim em si mesmo, mas deve ser um instrumento para a verdade, assim como o caminho não tem outro significado senão o de conduzir ao fim, que desaparece, relativizado, quando o primeiro é absolutizado, como acontece na nova igreja sinodal, que o transforma em uma mera jornada circular na qual até o maquiavelismo é eclipsado, já que não é mais o fim que justifica os meios, mas sim o contrário, suplantando os fins. 

Finalmente, não posso deixar de lamentar, com desolação, que a igreja se encontre agora em plena tempestade: atacada não só por inimigos externos, mas também massacrada por inimigos internos, e sob fogo cruzado duplo: o daqueles que a impelem a prostituir-se perante o mundo, e o daqueles que a acusam de já se ter prostituído irremediavelmente ao mundo; Assim, em suma, todos eles vêm em massa, gerando uma confusão indescritível, para destruir e negar a própria essência da Igreja como um corpo social visível que percorre toda a história em evolução orgânica, sem cortar as raízes que a unem à sua cabeça e sem obstruir a seiva vital que recebe de sua alma; portanto, diante de tudo isso, é imperativo salvaguardar a identidade da única Igreja Católica historicamente reconhecível, e a única maneira de fazê-lo reside no que Bento XVI chamou de “hermenêutica da continuidade”, o que, no entanto, se torna impossível tanto para aqueles que rejeitam o Concílio Vaticano II quanto para aqueles que, concordando com os primeiros, o utilizam como álibi para a consumação da ruptura doutrinal efetiva.

 

Fonte - infovaticana

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...